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Mostrando postagens de 2013

DESEJOS PARA 2014 OU DOS ERROS A SEREM EVITADOS

Deu tempo: vai aí a saideira de 2013! Como em todo final de ano, reservamos os últimos dias para fazer um balanço e programar o ano que está por chegar. O balanço já fizemos no texto de 13 de dezembro:  http://palavrasdebulhadas.blogspot.it/2013/12/retrospectiva-lingua-portuguesa-rumo-ao.html  . Portanto, falta o programa, aquela lista de coisas (boas, presume-se) para colocar em prática em 2014. E isso tem a ver com português? Ah, tem! Porque a coisa mais chata é ler aquelas mensagens cheias de boas-intenções mal apresentadas. Tipo assim: "Espero que as pessoas sejam menos corruptas"... O que é isso? Ser um pouquinho menos corrupto? Ser corrupto, mas não tanto? Certas qualidades não admitem gradação, sinto muito. É uma questão de estilo. Então aquele amigo que mente um pouquinho pode ser pouco mentiroso, mas sempre mentiroso é. "Espero contar com amigos mais sinceros". Outra ilusão. É assim: o sujeito sabe que está sendo enganado, mas acredita só naquele

E-RONIA, O TRIUNFO DA RETÓRICA NA ERA DAS REDES SOCIAIS

"Só sei que nada sei". Um dos momentos mais gloriosos da ironia encontra-se nos primórdios da filosofia ocidental. Graças aos discursos platônicos, hoje existe uma categoria específica de ironia, a ironia socrática. Para "parir" as ideias, Sócrates, a personagem dos discursos platônicos, reunia para um bate-papo uma plateia, à qual confessava não conhecer determinado assunto, mas estar muito interessado em entendê-lo. A conversinha mansa ia adiante entre uma pergunta e uma resposta e aos poucos o conhecimento emergia. Era uma mentira descarada essa do Sócrates, porque ele sabia bem do que falava, mas se valia da ironia ("eu não sei, não...") para alimentar o debate e conduzir os participantes às suas ideias. Esse "emergir" gradual é o chamado método maiêutico, que significa "parir". Parir ideias. Escrever a tese foi um parto. Escrever um livro é como ter um filho. O nosso cotidiano ainda está impregnado dessas ideias lançadas n

LAMPIÃO DE GÁS, QUANTA SAUDADE VOCÊ ME TRAZ

Só os nostálgicos acompanham e lembram de Inezita Barroso. Um marco do nosso cancioneiro popular. Foi de Inezita que lembrei quando, pensando na minha infância escolar, pensei nesses termos, caídos em desuso e destinados às palavras em via de extinção do blog: mimeógrafo, papel carbono e mata-borrão. Essas palavras teriam sentido hoje? Sim, por que não? Na época da reprodutibilidade técnica (para citar um termo caro aos benjaminianos e que é mais atual do que nunca), reproduzir de modo limitado e artesanal pode ser um diferencial. Certamente os documentos produzidos com a técnica do mimeógrafo tornam-se históricos e os estudos da difusão das matrizes poderia ser um ótimo assunto de pesquisa em relação às formas digitais (ou virais) de transmissão atuais, que nós, professores, chamamos de "copia e cola". E pensar que a cópia, ainda que humilde, foi determinante na transmissão dos grandes saberes da humanidade! E que o copiar foi método nas artes e na transmissão da cultu

RETROSPECTIVA: A LÍNGUA PORTUGUESA RUMO AO FUTURO

Mais um ano se encerra. E a língua segue o seu curso. Para quem pensa que retrospectiva faz sempre balanço, aqui vão notícias que abrem perspectivas para o português. Janeiro - É apresentado um protótipo de aplicativo para a tradução do português para a linguagem brasileira de sinais (Libras). A língua amplia as suas fronteiras quando se liga a outras linguagens. Ótima notícia para começar o ano. Favereiro - Até o final do século XXI, o português contará com 350 milhões de falantes nativos, aponta estudo. Março - O Papa não é brasileiro. Mas é gaúcho. Fronteiras compartilham culturas e saberes ultrapassam as línguas nacionais. Abril - O Parlamento da Região Autônoma da Galícia apresenta uma proposta interpartidária a favor da incorporação progressiva do ensino do português na grade curricular e futura exigência em concursos públicos; recepção aberta em rádio e televisão de programação falada em português; e participação formal da Galícia em eventos e em instituições internacionais

RISUS ABUNDAT IN ORE STULTORUM

O riso abunda na boca dos tolos. É o que ensina o dito popular. Será? Por que será que Aristóteles preocupou-se tanto com a comédia, prometendo até um texto dedicado somente a esse assunto, apesar de ele nunca ter sido encontrado? E Freud com o chiste? Por quê? E Bergson, que considerava o riso a mais humana das nossas características? E os gênios da literatura que se dedicaram ao gênero cômico? E Fernando Pessoa que elevou todos os ridículos ao sublime? Todos eles estariam preocupados com uma coisa boba? O riso é sem dúvida uma reação não-verbal com alto teor comunicativo. Supera as barreiras do autocontrole, explode de modo irrefletido, emerge aos fluxos mediado pelo raciocínio. Mas tem sempre uma causa comum: uma transgressão da linguagem, proposital ou ocorrida por distração, que aciona a reação imediata. Dou alguns exemplos: O político que diz durante um pronunciamento: "Aqui nesta cidade fundada por Rômulo e Rêmulo"... foi uma daquelas gafes que fizeram as p

O RETÓRICO, O PEDANTE E O ERUDITO NA ERA DA INFORMAÇÃO

Quem já leu vários textos aqui no blog percebeu que odeio pessoas retóricas e detesto pessoas pedantes. Volta e meia retorno ao tema, porque pedantes e retóricos, apesar dos tempos que correm, não perdem o vício e parece que não perdem a graça. É como na velha história: em terra de cego, quem tem um olho é rei. E assim, no nosso deserto cultural, que até parece fértil diante da oferta à disposição, pedantes e retóricos continuam a vender camelos, a serem os protagonistas do nosso oásis. Pena que o oásis é uma miragem. A primeira coisa que é preciso saber é que a sociedade de informação (uma das características marcantes do nosso tempo e que alguns chamam de forma otimista como sociedade do conhecimento) é uma sociedade com um grande problema de inflação e de reiteração de informação. Temos informação demais, informação desorganizada (ou melhor, organizada pelo algoritmo de Google para o público de massa que, pasmem, é formado em grande parte por pessoas formadas e bem formadas): qual

PARA QUE FALAR DO MUNDO QUANDO SE FALA DA LÍNGUA

Quem lê o Palavras Debulhadas já está acostumado a ler textos sobre coisas que aparentemente nada têm a ver com a língua. Só que a aparência engana. Eu costumo dizer assim: falar da estrutura da língua, falar da sua gramática, é louvável. Mas a língua é muito mais do que isso. A língua é um veículo poderoso de comunicação, que se conecta a gestos (que é linguagem não-verbal, mas extremamente comunicativa), que possui musicalidade (também essa uma linguagem não-verbal, mas que se relaciona mais diretamente à estrutura da língua por causa da fonética), que pode ter dimensão plástica (a literatura do século XX está aí para ensinar que a disposição da língua escrita na folha de papel comunica algo só por sua dimensão, cor e disposição espacial). Há um longo caminho a ser percorrido pela escola, para que o ensino deixe de apostar na gramática como elemento predominante da aprendizagem e valorize a língua em todos os seus aspectos - inclusive, mas não só, gramatical. Sei que isso vai se

NÃO É BAGUNÇA, É ENTROPIA

Em junho deste ano dediquei uma postagem aos termos utilizados para definir os manifestantes que protestavam e estão protestando em todo o Brasil: http://palavrasdebulhadas.blogspot.it/2013_06_01_archive.html Mas na lista dos termos faltou uma palavra brasileiríssima: bagunça. A sua origem não é clara, as fontes que consultei sugerem raízes bem diferentes: para alguns, a palavra vem do celta, para outros do francês, outros dizem que pode ter surgido em Minas Gerais, derivada da palavra bagaço. Pessoalmente, acho a última hipótese interessante, mas é bom deixar claro que estamos falando de gosto, não de provas. Talvez, um dia, as provas da sua origem sejam reencontradas, em um texto velho, empoeirado, perdido em algum arquivo ou sótão. Encontrar a fonte do seu uso primordial na língua representaria o elo perdido para entendermos essa palavra tão comum e tão usada entre nós. E a história acaba assim, explicando que não sabemos onde tudo começou? Claro que não. Porque a bagunça tem

RACISMOS

Hoje estava na dúvida se falar de "bagunça" ou de racismo. Optei pelo último termo por questões cronológicas, para não perder a ocasião de relembrar a semana da consciência negra. Mas esperem logo a postagem sobre a "bagunça". Vamos ao racismo! O que isso tem a ver com o português? Em primeiro lugar, há a questão histórica. Depois, há a questão científica, que, mesmo tentando negar, historiciza-se e sucumbe ao limite do seu tempo: sempre há tempo para recordar que toda ciência é feita de hipóteses, e que toda hipótese é destinada a ser posta à prova ao longo do tempo. Enfim, há a questão da língua, que veicula, sem advertir os falantes de que nada é definitivo, de que tudo muda o tempo todo. Todo racismo é histórico, mas estamos esperando há tempo demais uma mudança de mentalidade. Ou os historiadores estão falhando, ou a ciência está sendo ineficaz, ou a língua não está veiculando as novidades, ou os falantes estão fazendo resistência à inexorável mudança do

ESTA NÃO É A SUA VIDA

Dizem que o público das tragédias gregas na época da Grécia antiga experimentava a sensação de catarse: sentia como se vivenciasse realmente o que estava apenas vendo ser representado no palco. Dizem que o público shakesperiano não só confundia o ator com a personagem representada, mas também comia, bebia e conversava no Globe Theater enquanto a cena era representada. Dizem que o telespectador brasileiro não faz distinção entre o ator e a personagem da novela televisiva. Dizem que Molière morreu durante uma encenação de O doente imaginário: mais sobreposição entre realidade e representação impossível. Deve ser por isso que os possíveis biografados brasileiros têm tanto medo dos autores. O leitor não vai saber fazer a distinção entre a representação e a realidade... Qual realidade? Não era Caetano Veloso que dizia que de perto ninguém é normal? Enfim, eu entendo que os ídolos não queiram ser biografados. Não queiram estar acima do bem e do mal. Queiram aquela cotidianidade median

TEMPO

Peço perdão aos leitores, mas o tempo tem sido pouco. E o blog paga o pato. Aproveitando a deixa de ser o dia do tradutor (também dia do bibliotecário e da secretária), cujo patrono é São Jerônimo, o primeiro tradutor da Bíblia, da versão conhecida como Vulgata, compartilho esse trecho muito poético do Eclesiastes, capítulo 3: 1.  Para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento debaixo dos céus: 2.  tempo para nascer, e tempo para morrer; tempo para plantar, e tempo para arrancar o que foi plantado; 3.  tempo para matar, e tempo para sarar; tempo para demolir, e tempo para construir; 4.  tempo para chorar, e tempo para rir; tempo para gemer, e tempo para dançar; 5.  tempo para atirar pedras, e tempo para ajuntá-las; tempo para dar abraços, e tempo para apartar-se. 6.  Tempo para procurar, e tempo para perder; tempo para guardar, e tempo para jogar fora; 7.  tempo para rasgar, e tempo para costurar; tempo para calar, e tempo para falar; 8.  tempo para amar, e tem

PROCURA-SE TELÊMACO

Telêmaco? Telêmaco, filho de Ulisses, cansado do assédio à sua mãe (e ao trono de Ítaca), um dia decide meter mãos à obra e ir em busca do pai. Segue o trecho, da ótima edição da Cultrix, em que o rapaz anuncia a sua intenção: É isso aí. Precisamos de telêmacos. É ótimo ter ideias, mas é fundamental colocá-las em prática. É uma pena que a figura de Telêmaco não tenha o mesmo prestígio que a do Mentor (daí o epônimo mentor, em português e em outras línguas neolatinas). Mentor era o tutor de Telêmaco, pessoa de total confiança de Ulisses, como mostra o trecho que dá prosseguimento à fala do jovem: É uma grande falha confundir Mentor com um mentorzinho qualquer. O mundo está cheio de gente que tem opinião sobre tudo, sugestão para tudo e até solução para todos os males. Mas vejam o que diz Mentor diante do vazio de poder que se instalara em Ítaca e do caos que ameaçava Penélope, o filho Telêmaco e, consequentemente, toda a cidade: Mentor não recrimina os pretendentes, que,

LEMBREI: SOU PROFESSORA

Há um ano trabalho oficialmente como tradutora. A tradução não é uma atividade nova na minha vida profissional, mas até o ano passado era o meu segundo trabalho, embora fosse o mais importante economicamente. Isso é só para explicar o que todo mundo sabe: que professor ganha muito mal. Professores bem remunerados são tão raros quanto os pandas da China, quanto os tigres de Bengala, quanto os ursos pardos da Europa. Tradutores bem remunerados também são raros. Como disse, o trabalho de tradutor era o meu segundo emprego, e em geral é assim para os grandes e para os desconhecidos tradutores, que levam adiante o seu trabalho por amor à literatura e à ciência, por amor à difusão do conhecimento. A diferença é que tradutores de profissão são poucos e, em geral, quando alcançam essa condição sabem que estão entrando em um círculo privilegiado; professores de profissão precisam ser muitos e sabem que estão condenados a uma vida de sacrifícios em troca da nobre missão. Os professores têm

MEMÓRIAS - ENTRE O PÃO E A PALAVRA

A minha primeira experiência marcante na docência aconteceu dentro de uma grande fábrica. Eram os anos em que as empresas investiam em cursos preparatórios para exames supletivos. Não faziam isso por súbito compromentimento social, nem por filantropismo (quero dizer filantropismo mesmo, não filantropia) ou por visão estratégica da formação para os resultados industriais: investiam só porque eram obrigadas a obter a certificação internacional de qualidade do processo de produção, a famigerada ISO 9000, que previa a execução do trabalho por pessoas com uma formação comprovada no papel. É relevante notar que o ponto básico era esse: não importava fazer digerir o conhecimento ou fornecer uma formação capaz de ampliar os horizontes e criar possibilidades de crescimento profissional para os funcionários. O importante era que o maior número possível de funcionários obtivesse a aprovação no exame supletivo. Bem entendido que quem não passasse no exame arriscava o emprego. A empresa fazia o

ABECEDÁRIO PROVISÓRIO SOBRE A LÍNGUA SEGUNDO OS SEUS MESTRES

Se a língua é feminina, esses senhores não se furtaram ao seu encanto. Amor - "Não há língua que d'amor não cante" (José Albano) Beleza - "Grande Língua! Essa do Pedro. Essa do Zé. Pois é. E mais não digo e beleza!" (Pedro Américo de Farias) Carecimentos - "A língua deste gentio toda pela Costa é, uma carece de três letras – scilicet, não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente." (Pero de Magalhães Gândavo) Dialeto - "O dialeto que se usa à margem esquerda da frase, eis a fala que me lusa, eu, meio, eu dentro, eu, quase."  (Paulo Leminski) Enigma - "Como podia ser que entendessem o enigma da terra, se não tinham as notícias nem a língua dela?" (Padre Antônio Vieira) Ferro - "Reparou nas flores de ferro dos quatro jarros das esquinas? Pois aquilo é ferro forjado. Flores criadas numa outra língua." (João

HÁ TRUQUES E TRUQUES

Antonio Candido que me perdoe, mas malandragem não é fundamental. Admiro o grande mestre, que soube descrever a malandragem como um dos traços distintivos da cultura brasileira, mas, sabe como é, em país de malandro, toma-se por receita o que é diagnóstico! Na realidade, Candido nunca fez apologia da malandragem: apenas reconheceu e explicou a peculiaridade da literatura de Manuel Antônio de Almeida e de Mário de Andrade. São os maus leitores que acharam que a malandragem é uma gracinha e um direito universal dentro da nação brasileira. Estou disposta a pagar novamente o ônus de ser considerada moralista, o que posso fazer? Chego à conclusão de que sou mesmo assim. Mas não demonizo nada e ninguém: sei apreciar e rir das peripécias do Sargento de Milícias, sei ver a alegoria de um Macunaíma, mas isso não significa que anulei o meu discernimento. Macunaíma, é sempre bom lembrar, é o herói sem nenhum caráter: se a literatura tem uma função social, Mário de Andrade deixou ao leitor um p

POESIA PARA QUÊ?

Hoje a poesia está para a língua como a arte abstrata está para a pintura. Para catalogá-la, já não bastam os elementos formais como rima, métrica, musicalidade, figuras de linguagem. O prosaico urbano invadiu o espaço poético, como outrora invadira o cotidiano (suponho) o bucolismo, mas a fúria prosaica não respeita os cânones líricos do passado. A anti-lírica e a falta de lirismo são o reverso da medalha e querem o seu espaço de negação lírica legitimado. Os poetweets e os aforismos poéticos desafiam a síntese. Romances em versos (recentemente passei os olhos por um, escrito por um jovem escritor italiano) apostam suas fichas em provocações nostálgicas. A música popular há muito tempo virou objeto de considerações acadêmicas, ganhando também a sua pequena glória literária. Vão-se os tempos em que os mais tradicionalistas contestavam a presença de Paulinho da Viola no júri de um prêmio literário. E Chico Buarque já ganhou todos os prêmios do nosso panteão. E apesar de toda a conf

CONSIDERAÇÕES SOBRE O NADA

Se alguém achava que o niilismo é coisa do longínquo século XX, leia a Encíclica do Papa Francisco. Mas o meu assunto é língua portuguesa, então, vamos lá: "Niilismo"  vem do latim "nihil", quer dizer, nada. Em italiano escreve-se "nichilismo" (a pronúncia correta é niquilismo): em português temos " aniquilar ", uma palavra proveniente do baixo latim "annichilare", que por uma série de transformações também possui suas raízes em "nihil". "Nada" , em vez, vem da expressão latina "res nata", "coisa nascida". Para entender como isso transformou-se em "nada", é preciso saber que na expressão "res nata" estava implícita uma elipse, ou seja, estava omitida a palavra "não", "res nata", potanto, era "o que não havia", era "nada". Em relação ao aspecto fonético é interessante notar a alternância d/t, que se verifica em outras palavras da líng

A CRISE, OS VÂNDALOS, OS REVOLTOSOS, OS REBELDES E OS ARRUACEIROS

Quem sou eu para explicar o que está acontecendo no Brasil? Explicação é o que não falta nessa hora de crise. Há explicações sociológicas, explicações políticas, explicações psicológicas, explicações antropológicas. Li muitas interpretações do fato. Na maior parte dos casos, trata-se de um esforço honesto para informar; às vezes são testemunhos que não podem prescindir da visão de mundo do autor, às vezes são relatos ideológicos, às vezes são desabafos que distraem o leitor e mobilizam as paixões, gerando sintonia, repúdio e catarse. Quem sou eu para explicar o que está acontecendo no Brasil? Eu sou uma simples professora de línguas, eu só posso aconselhar: se tiverem olhos para ler, leiam bem. Se tiverem ouvidos para ouvir, escutem bem. É a hora do discernimento, da capacidade de identificar os diferentes discursos, as distintas ideias que estão sendo lançadas. E nessa matéria os professores de língua devem dizer algo. Devem aproveitar a oportunidade única que este momento histórico

BOAS-VINDAS AOS INTRUSOS DA LÍNGUA

Hoje me caíram sob os olhos dois textos opostos que levavam à mesma questão: a presença de muitos vocábulos estrangeiros no uso da língua portuguesa (do Brasil). Um dos textos, de Clair Castilhos (https://claircastilhos.wordpress.com/2013/06/09/outlet-in-terra-brasilis/) fala dos abusos de termos estrangeiros. Os exemplos são bem interessantes e dão uma ideia do panorama. O outro, publicado pela revista Língua Portuguesa (http://revistalingua.uol.com.br/textos/blog-abizzocchi/palavras-estrangeiras-inventadas-em-portugues-290378-1.asp), fala de palavras estrangeiras inventadas em português. O perigo dos estrangeirismos é sempre latejante, mas o mal não é tão grande quanto parece e, principalmente, não é algo tão ideológico como denunciam alguns políticos que pretendem controlar a evolução da língua por meio de decretos. Pelo contrário: a contaminação da língua por vocábulos estrangeiros é um desafio, que coloca à prova a força da língua (a sua hegemonia em relação às outras línguas às

POR E PARA - A MÃE BOA E A MÃE BOBA

Contei dezenas de vezes a história da mãe boa e da mãe boba para meus alunos. Até que um dia um dos alunos se ofendeu. Vou explicar por quê. Para explicar a diferença de uso entre as preposições "por" e "para" costumo comparar com a mãe. A mãe boa faz tudo por um filho: faz sacrifícios, faz economia, faz investimentos, faz escolhas. Tudo o que faz é por uma CAUSA, o filho. A mãe boba é aquela que faz tudo para o filho: faz a cama para o filho, serve o prato para o filho, arruma a mochila para o filho. Faz um favor (geralmente desnecessário) para um DESTINATÁRIO, o filho. Mas quando a mãe faz PARA o filho, NÃO ESTÁ FAZENDO POR UMA CAUSA (a felicidade, o sucesso, a vitória, o bem... do filho). Claro que no dia a dia caímos muito no papel de mãe boba. Ser bobo na vida, quando ser bobo significa ser gentil, é uma virtude rara hoje. Mas mãe tem que botar limites na sua bobice e ser bobinha só de vez em quando. Do contrário vira escrava do filho e da família! Toda es

QUE TAL?

Hoje começo utilizando o péssimo costume dos internautas: citando. Segue a definição de "tal" de acordo com o Dicionário Aurélio. [Do lat. tale, 'semelhante'.] Pron.    1. Semelhante, análogo, tão bom, tão grande, etc.     2. Este, aquele; um certo  3. Isso, aquilo  4. Us. depois de um substantivo, pode substituir um nome que se quer ou se finge ocultar   5. Lus.  Designa quantidade que excede em número redondo; tanto(s) S. 2 g.   6. Bras.  Gír.  Pessoa que tem, ou julga ter valor excepcional em qualquer coisa; o notável, o batuta, o bamba, o ás   "Tal" parece uma palavrinha tão inofensiva... mas pensando bem, complica a vida do falante, especialmente se não for falante nativo, porque admite muitos usos idiomáticos. Começo pela expressão "que tal?" . Em muitos lugares, "que tal" introduz uma pergunta que equivale a "o que acha de...?". Exemplo: "Que tal um cineminha hoje?". Mas

COMO DIZER "PROBLEMA" E COMO EXORCIZÁ-LO

Quando fico submersa por mensagens que exaltam o lado positivo da vida, a bondade que está dentro de nós, a felicidade a todo custo, penso: como pode uma sociedade "do bem" ser tão e tão continuamente violada pelo mal? Será que falta determinação em fazer o bem ou falta determinação em cortar o mal pela raiz? Aposto que na nossa cultura o problema está na nossa pouca força para enfrentar o mal. A gente nega, diz que não foi por querer, encontra desculpas indesculpáveis e tem ojeriza à responsabilidade. A culpa é sempre do outro e "eu não sei, não vi, nem quero saber": não é problema meu. Nisso, o uso da língua é exemplar. Nós temos dois padrões para escapar daquilo que nos incomoda: usando a metáfora ou recorrendo à catacrese, quer dizer, a um termo que no contexto serve como sinônimo, mas sinônimo não é. Quando temos um problema, mas não queremos dizer de forma explícita, recorremos a metáforas como: abacaxi, pepino, batata quente, zebra (usadas para cois

TRADUZIR É...

1. Conhecer o vocabulário das línguas de trabalho e dedicar-se a aprimorá-lo sempre 2. Dominar as diferentes estruturas sintáticas 3. Ser capaz de transpor diferentes registros linguísticos 4. Ser capaz de reproduzir em diferentes idiomas as suas musicalidades 5. Tentar captar as intencionalidades e saber sugeri-las em outra língua 6. Saber identificar o destinatário ideal do texto original e saber imaginar o destinatário na língua traduzida 7. Procurar metáforas que se aproximem de uma equivalência 8. Tentar ser fiel 9. Reconhecer as próprias limitações e tentar superar os próprios limites 10. É gostar de resolver problemas e saber que sempre haverá um resíduo de incompreensão Escrevi os nove primeiros pontos só para chegar ao décimo, porque estou convencida de que o bom tradutor permanece sempre um pouco incompreendido. O bom tradutor obviamente conhece bem a língua, as suas estruturas fonéticas, lexicais, sintáticas e semânticas. Sabe que um texto tem um autor real ao qua

OUTRA VEZ O BELETRISMO

Belestrismo é um termo derivado e aportuguesado do francês "belles lettres", as belas letras. O beletrismo é geralmente usado em sentido pejorativo, para indicar uma atitude de afetação em relação à cultura. É a ostentação da cultura. É a publicidade enganosa. Costumo associar ao beletrismo o nosso arraigado bacharelismo, mas, muito melhor do que eu, Lima Barreto soube bem exemplificar o que é bacharelismo e reles beletrismo no magistral conto "Numa e a Ninfa". O protagonista é um bacharel formado por apostila, especialista em resumos, com um verniz de cultura de almanaque, o suficiente para fazer uma ou outra citação capaz de causar efeito em uma plateia tão culta quanto ele. O drama do deputado Numa evidencia-se quando ele descobre que a ajudar a redigir os seus discursos não é somente a esposa abnegada, disposta a varar madrugadas para salvar a reputação do marido, mas o amante que é ninguém menos que o seu adversário político. A solução cômica dada pelo autor,

É MEU FREGUÊS!

Quem já ouviu a expressão "É meu freguês!" exclamada em um estádio de futebol nunca ficou surpreso? Eu fiquei. Achei engraçada e criativa. A primeira vez que ouvi acho que o Internacional de Porto Alegre jogava com o Juventude de Caxias do Sul. Eram rivais, porque o Juventude por volta dos anos noventa estava decidido a obter a liderança no campeonato de futebol gaúcho, onde então reinavam somente duas estrelas: a do Inter e a do Grêmio. Quem é muito jovem não lembra da rivalidade de outros tempos, que incluía o São José e o Cruzeiro  (que voltaram ao campeonato recentemente), o Aimoré... Nos anos noventa os times fortes eram o Inter, o Grêmio e o Juventude. Quando uma equipe estava ganhando, a sua torcida gritava para o adversário: "É meu freguês!". Também usavam outra expressão: "Touca!" - alusão ao frio do Sul, mas isso é assunto para outro texto. Por que o time que perde "é freguês"? Porque o freguês faz o interesse do comerciante. Freguês,

ÉTICA - EM VIA DE EXTINÇÃO

Como pode uma palavra com setenta e nove milhões de citações na rede, com mais de oitenta e cinco mil citações em notícias, estar em via de extinção? Porque estão em via de extinção não apenas as palavras abandonadas, mas também aquelas que são utilizadas para chamar a atenção da opinião pública, ou, mais tristemente, as que se tornam objeto de polêmicas retóricas. A palavra "ética" hoje virou arroz-de-festa. Todo mundo usa para tirar o máximo proveito e usar o mínimo esforço. É claro que isso resulta de uma dissociação entre o discurso e a vida real. O método descritivo tomou o lugar do confronto de ideias. Moral da história: todo mundo fala sobre tudo e pode dizer, sem pestanejar, que está descrevendo o fato, não está defendendo a tese. O chato é que há anos, por defender as minhas posições, tenho sido acusada de ser moralista... Moralista, eu? Há anos tenho travado essa batalha quixotesca de buscar uma relação entre o dito e o feito. Eu não sou moralista, eu sou pros

UMA E OUTRA

Uma coisa é educar Outra coisa é instruir Uma coisa é formar Outra coisa é doutrinar Uma coisa é guiar Outra coisa é restringir Uma coisa é cultivar Outra coisa é podar Uma coisa é aguardar Outra coisa é omitir-se Uma coisa é apostar Outra coisa é duvidar Uma coisa é calar Outra coisa é mentir Uma coisa é falar Outra coisa é proclamar Uma coisa é afastar-se Outra coisa é fugir Uma coisa é dar Outra coisa é apreçar Uma coisa é avaliar Outra coisa é dividir Uma coisa é explicar Outra coisa é ditar Uma coisa é questionar Outra coisa é confundir Uma coisa é estimular Outra coisa é apressar Uma coisa é aceitar Outra coisa é desistir Uma coisa é preparar Outra coisa é treinar Uma coisa é acreditar Outra coisa é influir Uma coisa é cativar Outra coisa é aprisionar Uma coisa é educar Outra coisa é instruir Porque a vida não tem sinônimos.