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RACISMOS

Hoje estava na dúvida se falar de "bagunça" ou de racismo. Optei pelo último termo por questões cronológicas, para não perder a ocasião de relembrar a semana da consciência negra. Mas esperem logo a postagem sobre a "bagunça".

Vamos ao racismo! O que isso tem a ver com o português?

Em primeiro lugar, há a questão histórica. Depois, há a questão científica, que, mesmo tentando negar, historiciza-se e sucumbe ao limite do seu tempo: sempre há tempo para recordar que toda ciência é feita de hipóteses, e que toda hipótese é destinada a ser posta à prova ao longo do tempo. Enfim, há a questão da língua, que veicula, sem advertir os falantes de que nada é definitivo, de que tudo muda o tempo todo.

Todo racismo é histórico, mas estamos esperando há tempo demais uma mudança de mentalidade. Ou os historiadores estão falhando, ou a ciência está sendo ineficaz, ou a língua não está veiculando as novidades, ou os falantes estão fazendo resistência à inexorável mudança do mundo e aos estímulos que lhes chegam de várias fontes.

Eu não tomo partido nessa história, porque acho que há historiadores sectários, cientistas sectários, linguistas sectários e falantes sectários. Esse também é um fator que favorece o enraizamento do racismo de modo insidioso, e às vezes insuspeito.

Certamente o pior racismo encontra-se onde é negado. Mas a variedade de racismos não deve deixar de espantar. Repito: não deve deixar de espantar.

Para começar, eu não posso não ficar espantada com o fato de haver uma absurda distância entre o topo e a base da nossa sociedade, e de que no topo a maioria seja branca e de que na base a maioria seja negra ou mestiça. Isso acontece em um país que usa fontes históricas para justificar a sua suposta democracia racial.

Eu não posso deixar de ficar espantada diante de pessoas que se desculpam por não terem culpa de terem nascido brancas, mal disfarçando a percepção de que essa pertença em si mesma seria um privilégio.

Eu não posso não me espantar com a hipocrisia dos que, no conforto do lar, comovem-se com o racismo sofrido pelos outros (nesse sentido, é exemplar o episódio narrado por Machado de Assis em Memórias póstumas de Brás Cubas, quando conta da sua hesitação a dar uma esmola).

Eu não posso deixar de ficar espantada com os que dizem que racismo não é problema seu.

Eu fico ainda mais espantada com os que explicam de modo indiferente, que dizem ser imparcial, os motivos por que o racismo existe e persiste.

Eu fico muito espantada com a pieguice dos que reduzem cada pessoa a uma amostra estatística de uma pobreza historica e politicamente construída e lamentam "inocentemente" essa fatalidade.

Eu me espanto demais por encontrar tão poucas pessoas com as quais compartilhar ideais de um mundo que vá além da cor da pele. Que superem imediatamente os preconceitos, as teorias, as justificativas, as fatalidades, as balelas. Que olhem nos olhos, que valorizem os fatos e as capacidades.

Sim, racismo tem a ver com capacidade de análise, de avaliação de discursos, de interpretação de gestos (que também são aspectos não-verbais da comunicação).

Racismo é um termo a ser desconstruído, mastigado, digerido, vomitado, excretado. Não é a história do racismo que deve desaparecer: Rui Barbosa enganou-se. A história deve ficar como cicatriz dessa triste ferida. O que deve desaparecer, há muito tempo, é o racismo.

Comentários

  1. Racismo é só uma das (piores) formas de discriminação. Há muitas outras: o branco discrimina o negro, que discrimina o gay, que discrimina o gordo, que discrimina o pobre, que discrimina o rico, que discrimina todo mundo...
    O Brasileiro reclama da discriminação dos americanos, mas discrimina bolivianos.
    Sem contar o "sistema de castas": no meu trabalho, vejo funcionários não diplomáticos se queixando da discriminação dos diplomatas. Depois vejo os mesmos discriminando os que estão abaixo deles na hierarquia: pessoal de apoio, motoristas, porteiros faxineiros...

    Ótimo artigo, Gislaine!
    Abraço
    Roberto

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  2. Obrigada, Roberto, pelos comentários. Lendo o que você escreveu, percebi que esqueci outra população vítima de racismo: os povos indígenas. É triste constatar que continuamos a reproduzir o mesmo esquema cultural discriminatório desde a descoberta do nosso país. E vamos em frente, negando a realidade. Se conseguíssemos admitir os preconceitos já daríamos um grande passo para superar a discriminação. Mas o nosso hábito sofre ainda mais com a mania de fazer de todo limão uma limonada, adicionar um pouquinho de açúcar, fechar um pouquinho os olhos, engolir sem pensar... Um abraço

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