Se alguém achava que o niilismo é coisa do longínquo século XX, leia a Encíclica do Papa Francisco. Mas o meu assunto é língua portuguesa, então, vamos lá:
"Niilismo" vem do latim "nihil", quer dizer, nada. Em italiano escreve-se "nichilismo" (a pronúncia correta é niquilismo): em português temos "aniquilar", uma palavra proveniente do baixo latim "annichilare", que por uma série de transformações também possui suas raízes em "nihil".
"Nada", em vez, vem da expressão latina "res nata", "coisa nascida". Para entender como isso transformou-se em "nada", é preciso saber que na expressão "res nata" estava implícita uma elipse, ou seja, estava omitida a palavra "não", "res nata", potanto, era "o que não havia", era "nada". Em relação ao aspecto fonético é interessante notar a alternância d/t, que se verifica em outras palavras da língua portuguesa.
As palavras "nulo", "anular" e outras derivadas do latim, provêm da contração de "ne(c)" (não) e do pronome "ullus" (algum).
Já o popular "neca" vem do latim "nec", ou seja, "não". Aposto que a maioria das pessoas que usam (ou usavam) essa gíria não suspeitavam de uma origem tão nobre...
E "níquel"? Não se confunda aqui com o metal, que de acordo com algumas fontes poderia vir do sueco "nickel", em alusão à lenda de um duende insignificante das minas onde foi descoberto. Quando significa "nada", também provém do baixo latim "nichil", que já mencionei em "aniquilar". O Aurélio dá um exemplo de Carlos Drummond de Andrade a esse respeito: "Ia retirar-se, sem que o Silva compreendesse níquel". Talvez no meu português prosaico eu dissesse: "sem que compreendesse um níquel".
Costumo abordar essas aventuras vividas pelas palavras, feitas de transformações fonéticas, ortográficas, contrações, passando pelo falar culto ou por vias populares do latim ao longo de sua história secular, para mostrar que não é preciso ter medo nem ojeriza às mudanças que o português sofre cotidianamente. O fundamental é apropriar-se da língua com a sua história, dar ao falante instrumentos para que o seu repertório não fique restrito a um único tipo de registro linguístico. Para mim não há dicotomia entre o português coloquial e o português considerado padrão. "Padrão" é o português adequado para cada ocasião: cada situação tem um padrão mais ou menos adequado, que o falante deve estar preparado para usar se quiser sem bem compreendido, para não parecer um peixe fora d'água.
É por isso que o latim, apesar de ter saído dos nossos currículos, continua a ser fundamental. Não é beletrismo, nem postura pedante. São os vestígios da nossa história: ignorá-los é um mal que fazemos a nós mesmos como falantes, ou maus falantes.
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