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MEMÓRIAS - ENTRE O PÃO E A PALAVRA

A minha primeira experiência marcante na docência aconteceu dentro de uma grande fábrica.
Eram os anos em que as empresas investiam em cursos preparatórios para exames supletivos. Não faziam isso por súbito compromentimento social, nem por filantropismo (quero dizer filantropismo mesmo, não filantropia) ou por visão estratégica da formação para os resultados industriais: investiam só porque eram obrigadas a obter a certificação internacional de qualidade do processo de produção, a famigerada ISO 9000, que previa a execução do trabalho por pessoas com uma formação comprovada no papel.
É relevante notar que o ponto básico era esse: não importava fazer digerir o conhecimento ou fornecer uma formação capaz de ampliar os horizontes e criar possibilidades de crescimento profissional para os funcionários. O importante era que o maior número possível de funcionários obtivesse a aprovação no exame supletivo. Bem entendido que quem não passasse no exame arriscava o emprego.
A empresa fazia o seu cartaz entre os funcionários com as melhores cartas: o curso preparatório era gratuito, feito após o expediente de trabalho, mas pago como hora trabalhada, e os funcionários ainda tinham direito a um sanduíche! Parecia ótimo, mas ali estava toda a armadilha: o sanduíche e o cartão-ponto eram elementos de controle que a empresa utilizava com zelo exemplar. Os números precisavam fechar: um sanduíche para cada funcionário inscrito e cartão-ponto batido rigorosamente ao final do horário previsto para o curso. Quem recebia aquela oportunidade e não aproveitava era, no mínimo, chamado pela chefia para uma advertência. "Por que bateu o cartão antes do fim da aula?" "O que ficou fazendo na fábrica em vez de ir ao curso?" - perguntinha boba, a chefia sabia que quando os alunos ficavam na fábrica tinham que cumprir uma meta de produção...

Mas bonito mesmo foi quando eu fui chamada a dar explicação. Comparando o número de sanduíches distribuídos e o número de presenças em sala de aula, os números não estavam fechando. Eu distribuía mais sanduíches que o número de presentes. "Os alunos não podem fazer bis?" - perguntei. "Não". "O que fazem com os sanduíches que sobram?" (achei que eram reaproveitados no dia seguinte)... "São destruídos" - foi a resposta. "Ah..."
Obviamente, para permitir que alguns alunos recebessem mais que um sanduíche, passei a dar presença para os ausentes.
Os números continuavam a não fechar com os dados do cartão-ponto: por isso, os alunos passaram a ser revistados na saída para verificarem se alguém estava com sanduíche no bolso.
Quando os alunos me contaram da blitz, combinamos que passaria os sanduíches pela grade após passarem pela portaria (o centro de formação ficava por sorte em um prédio isolado, perto da cerca da fábrica em uma rua lateral).
Fui chamada de novo.
"Comparando o número de sanduíches distribuídos com a saída dos funcionários, vemos que os dados não fecham". Claro que dei uma resposta cândida: "eu me enganei na hora de marcar as presenças". "Mas se enganou também na hora de distribuir os sanduíches?" Fui desmascarada.

Tinha um dos alunos, um técnico sem diploma técnico, que era muito bom aluno. O problema é que ele tinha sempre muito trabalho e por isso faltava muito. Lembro de tê-lo visto no início do curso e nas duas últimas aulas, quando elaborei uma espécie de resumo prático para que ele enfrentasse a prova. Enfrentou e foi aprovado!
Quando recebi a advertência por causa dos sanduíches, lembrei do eletricista. Procurei-o na linha de montagem e combinei que lhe daria presença e daria o seu sanduíche a um colega, mas ele que saísse da fábrica somente após o horário correspondente ao fim do curso! Acordo fechado. Um sanduíche estava salvo.

Mas, vão me perguntar, por que todas essas peripécias por causa de um sanduíche?
É que um dos alunos era auxiliar de limpeza. Função que ele traduzia sem muitos rodeios: "sou lixeiro". Foi ele quem começou com a história do sanduíche. O seu turno começava cedo, o trabalho era pesado, tirando restos de aço pela fábrica toda. Mas o cansaço era o de menos. A sua preocupação eram os filhos. Ele tinha três ou quatro, agora não lembro. E ganhava salário mínimo. Comiam mal as crianças... E aquele sanduíche com presunto e queijo era tão gostoso, era um luxo tão grande. Pudessem os seus filhos comer o que lhe davam na fábrica...

Fiquei tão orgulhosa quando fui demitida e a minha supervisora disse que a empresa nunca daria uma recomendação para mim! Disse com raiva que não me interessava a recomendação de uma empresa como aquela. É uma pena que eu tenha dito com raiva. Hoje teria dito com convicção e encerraria o caso com uma risada de escárnio.

Ainda hoje lembro desse caso com frequência. Penso no absurdo que é a concepção de formação na nossa sociedade. Penso na chantagem e na mensagem que transmitiam com o método adotado: só nos interessa o papel, para podermos obter a ISO 9000! Conhecimento? Balela. Crescimento pessoal e profissional? Balela. Estudar não serve para nada, ninguém vai receber aumento de salário. Ninguém vai ter promoção. Mas, se não entregar o diploma, vai para a rua. Enquanto pensavam na ISO e nos lucros que isso iria gerar, o lixeiro vinha às aulas diligente, escondendo o sanduíche no bolso para levar para os filhos. Engolindo o seu salário de fome.

Infelizmente isso não é conto. Isso não é literatura. Isso é apenas uma história como tantas outras que acontecem ainda hoje no nosso país.

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