Quem lê o Palavras Debulhadas já está acostumado a ler textos sobre coisas que aparentemente nada têm a ver com a língua. Só que a aparência engana.
Eu costumo dizer assim: falar da estrutura da língua, falar da sua gramática, é louvável. Mas a língua é muito mais do que isso.
A língua é um veículo poderoso de comunicação, que se conecta a gestos (que é linguagem não-verbal, mas extremamente comunicativa), que possui musicalidade (também essa uma linguagem não-verbal, mas que se relaciona mais diretamente à estrutura da língua por causa da fonética), que pode ter dimensão plástica (a literatura do século XX está aí para ensinar que a disposição da língua escrita na folha de papel comunica algo só por sua dimensão, cor e disposição espacial).
Há um longo caminho a ser percorrido pela escola, para que o ensino deixe de apostar na gramática como elemento predominante da aprendizagem e valorize a língua em todos os seus aspectos - inclusive, mas não só, gramatical.
Sei que isso vai ser lido como uma provocação, mas o Lula era, sim, um grande falante. Um falante eficaz. Tão eficaz que arrastou para seu discurso milhões de pessoas, apesar dos erros gramaticais.
Vargas era um grande falante: basta lembrar que ainda hoje é citado como o pai dos pobres. E isso apesar de ter sido um ditador, de ter manchado a sua biografia com um dos piores crimes do século XX, o da deportação dos judeus.
Papa Francisco é um grande falante, e comunica-se com o mundo todo e faz todo mundo entender as suas expressões platinas que entram quase automaticamente no vocabulário das mais variadas línguas.
Obama? Grande falante. Graças a ele agora todo mundo diz: nós podemos.
E o Berlusconi, na Itália, grande falante! Agora caiu, e já está nos braços da massa. De canalha a mártir.
Mas é importante aprender uma coisa: que assim como a gramática por si só não faz um grande falante, um grande falante não se transforma em uma boa pessoa só porque fala bem! E quanta gente, às vezes até bem formada, repete aquelas falácias: sim, rouba, mas como é inteligente. Sim, é corrupto, mas pelo menos não fere os meus ouvidos. Sim, não fez grande coisa, mas quando falava ninguém ficava envergonhado de ser representado por ele...
O beletrismo é tão arraigado entre nós que chego a pensar que às vezes produz uma espécie de síndrome de Estocolmo: a pessoa é raptada por um discurso hipnótico e desenvolve laços com quem por efeito do próprio discurso se torna seu algoz...
Todavia, para voltar aos grandes falantes, é preciso entender que, bons ou maus do ponto de vista humano, eles têm em comum o fato de irem além da gramática, às vezes aquém, mas sempre saberem lidar com os recursos da língua. Sabem, sobretudo, relacionar aqueles sons melodiosos, furiosos, apaixonados, duros, ameaçadores, esperançosos, a fatos bem concretos da vida. Em uma palavra: comunicam.
Comunicar: deriva da palavra "comum", que provém do latim "communem". E "communem" é uma palavra composta pelo prefixo "cum" (em português "com") e o adjetivo "munis", que indica o que realiza uma tarefa (aliás, "imune" significa exatamente o contrário, quer dizer, livre de uma tarefa; "munir", por sua vez, está ligado a carregar; e por aí vai). Por "comum" entende-se aquilo que está implicado, que é co-obrigado. Parece tão distante do uso atual, mas as palavras têm vida longa, e vivem mil aventuras!
Então, ao verbo "comunicar" subjaz uma implicação, um vínculo entre quem fala e quem escuta. E que vínculo pode ser mais eficaz do que o vínculo da própria vida, o vínculo da experiência?
Essa dimensão da língua está bastante presente no nosso cotidiano, mas é utilizada para manipular, para angariar ou manter o poder, é usada para vender, é usada até na literatura de segunda classe, aquela que conhecemos como livros de auto-ajuda, tão desprezados pela crítica e tão amados pelos leitores. Por quê? Porque usam a língua colocando dentro do discurso o exemplo de vida, o caso concreto, todo aquele sangue, aquele suor, aquele excremento que nós, professores, abstraímos para falar da língua pura.
Vou continuar falando do mundo quando falar da língua. Porque com a língua as pessoas ligam-se ao mundo, ligam-se umas às outras, dão sentido às suas experiências.
O resto é gramática e revisão. É um trabalho que sempre deve ser feito com diligência, paciência e sistematicidade. Com respeito por quem lê. Por respeito por nós mesmos, porque usar uma língua incorreta, viciada, usar uma língua suja é como se apresentar com uma roupa suja. A língua é um dos nossos primeiros cartões de visita, depois do sorriso e do olhar, que causam a primeira impressão em quem dialoga conosco. A língua é parte da nossa identidade, da nossa história.
A língua é um mundo.
Eu costumo dizer assim: falar da estrutura da língua, falar da sua gramática, é louvável. Mas a língua é muito mais do que isso.
A língua é um veículo poderoso de comunicação, que se conecta a gestos (que é linguagem não-verbal, mas extremamente comunicativa), que possui musicalidade (também essa uma linguagem não-verbal, mas que se relaciona mais diretamente à estrutura da língua por causa da fonética), que pode ter dimensão plástica (a literatura do século XX está aí para ensinar que a disposição da língua escrita na folha de papel comunica algo só por sua dimensão, cor e disposição espacial).
Há um longo caminho a ser percorrido pela escola, para que o ensino deixe de apostar na gramática como elemento predominante da aprendizagem e valorize a língua em todos os seus aspectos - inclusive, mas não só, gramatical.
Sei que isso vai ser lido como uma provocação, mas o Lula era, sim, um grande falante. Um falante eficaz. Tão eficaz que arrastou para seu discurso milhões de pessoas, apesar dos erros gramaticais.
Vargas era um grande falante: basta lembrar que ainda hoje é citado como o pai dos pobres. E isso apesar de ter sido um ditador, de ter manchado a sua biografia com um dos piores crimes do século XX, o da deportação dos judeus.
Papa Francisco é um grande falante, e comunica-se com o mundo todo e faz todo mundo entender as suas expressões platinas que entram quase automaticamente no vocabulário das mais variadas línguas.
Obama? Grande falante. Graças a ele agora todo mundo diz: nós podemos.
E o Berlusconi, na Itália, grande falante! Agora caiu, e já está nos braços da massa. De canalha a mártir.
Mas é importante aprender uma coisa: que assim como a gramática por si só não faz um grande falante, um grande falante não se transforma em uma boa pessoa só porque fala bem! E quanta gente, às vezes até bem formada, repete aquelas falácias: sim, rouba, mas como é inteligente. Sim, é corrupto, mas pelo menos não fere os meus ouvidos. Sim, não fez grande coisa, mas quando falava ninguém ficava envergonhado de ser representado por ele...
O beletrismo é tão arraigado entre nós que chego a pensar que às vezes produz uma espécie de síndrome de Estocolmo: a pessoa é raptada por um discurso hipnótico e desenvolve laços com quem por efeito do próprio discurso se torna seu algoz...
Todavia, para voltar aos grandes falantes, é preciso entender que, bons ou maus do ponto de vista humano, eles têm em comum o fato de irem além da gramática, às vezes aquém, mas sempre saberem lidar com os recursos da língua. Sabem, sobretudo, relacionar aqueles sons melodiosos, furiosos, apaixonados, duros, ameaçadores, esperançosos, a fatos bem concretos da vida. Em uma palavra: comunicam.
Comunicar: deriva da palavra "comum", que provém do latim "communem". E "communem" é uma palavra composta pelo prefixo "cum" (em português "com") e o adjetivo "munis", que indica o que realiza uma tarefa (aliás, "imune" significa exatamente o contrário, quer dizer, livre de uma tarefa; "munir", por sua vez, está ligado a carregar; e por aí vai). Por "comum" entende-se aquilo que está implicado, que é co-obrigado. Parece tão distante do uso atual, mas as palavras têm vida longa, e vivem mil aventuras!
Então, ao verbo "comunicar" subjaz uma implicação, um vínculo entre quem fala e quem escuta. E que vínculo pode ser mais eficaz do que o vínculo da própria vida, o vínculo da experiência?
Essa dimensão da língua está bastante presente no nosso cotidiano, mas é utilizada para manipular, para angariar ou manter o poder, é usada para vender, é usada até na literatura de segunda classe, aquela que conhecemos como livros de auto-ajuda, tão desprezados pela crítica e tão amados pelos leitores. Por quê? Porque usam a língua colocando dentro do discurso o exemplo de vida, o caso concreto, todo aquele sangue, aquele suor, aquele excremento que nós, professores, abstraímos para falar da língua pura.
Vou continuar falando do mundo quando falar da língua. Porque com a língua as pessoas ligam-se ao mundo, ligam-se umas às outras, dão sentido às suas experiências.
O resto é gramática e revisão. É um trabalho que sempre deve ser feito com diligência, paciência e sistematicidade. Com respeito por quem lê. Por respeito por nós mesmos, porque usar uma língua incorreta, viciada, usar uma língua suja é como se apresentar com uma roupa suja. A língua é um dos nossos primeiros cartões de visita, depois do sorriso e do olhar, que causam a primeira impressão em quem dialoga conosco. A língua é parte da nossa identidade, da nossa história.
A língua é um mundo.
Comentários
Postar um comentário