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COMO DIZER "PROBLEMA" E COMO EXORCIZÁ-LO

Quando fico submersa por mensagens que exaltam o lado positivo da vida, a bondade que está dentro de nós, a felicidade a todo custo, penso: como pode uma sociedade "do bem" ser tão e tão continuamente violada pelo mal? Será que falta determinação em fazer o bem ou falta determinação em cortar o mal pela raiz? Aposto que na nossa cultura o problema está na nossa pouca força para enfrentar o mal. A gente nega, diz que não foi por querer, encontra desculpas indesculpáveis e tem ojeriza à responsabilidade. A culpa é sempre do outro e "eu não sei, não vi, nem quero saber": não é problema meu.


Nisso, o uso da língua é exemplar. Nós temos dois padrões para escapar daquilo que nos incomoda: usando a metáfora ou recorrendo à catacrese, quer dizer, a um termo que no contexto serve como sinônimo, mas sinônimo não é.
Quando temos um problema, mas não queremos dizer de forma explícita, recorremos a metáforas como:
abacaxi, pepino, batata quente, zebra (usadas para coisas); mala, bucha (usadas para pessoas), entre outras. Evitamos a palavra que nos incomoda, usando o estilo tradicional que Guimarães Rosa soube explicitar de forma magistral: exorcizando, recorrendo a termos que aludam sem mencionar. A referência a Guimarães Rosa nesse caso não é casual, pois em sua obra mais célebre são justamente o mal e o diabo o centro da sua vereda linguística e literária.
Outra forma para negar o que nos incomoda é utilizar um sinônimo inadequado, por falta de um termo próprio. Na realidade, o termo próprio muitas vezes existe, mas é preciso admitir que o contexto cultural exerce um papel importante, inibindo certos usos. Por isso, violando a norma tradicional, pode-se incluir o termo "problema" como catacrese (quer dizer, sinônimo utilizado por falta de outro mais adequado) para uma série de termos, constituindo, em contextos determinados,  uma figura de linguagem de fato, apesar de, ao mesmo tempo, denunciar uma postura cultural - que pessoalmente não compartilho. Para mim, o abuso da palavra "problema" é um vício de linguagem que espero se corrija com o tempo.
Vou aos exemplos práticos para explicar melhor o que tentei sintetizar nas frases anteriores.
Considero o termo "problema" uma catacrese-vício de linguagem quando é utilizado para evitar a pronúncia de termos que causam desconforto. Repito, não é uma postura que compartilho, mas que observo abundantemente ao meu redor.
O sujeito precisa falar de trabalho, diz: "gostaria de falar de um problema". Precisa discutir a relação? Diz: "precisamos falar de um problema". Quer abrir uma discussão com os amigos sobre o mundo atual: "sabe, queria levantar um problema...". A palavra problema virou arroz de festa.
Fiz uma pequena lista dos temas que são substituídos pela palavra "problema" quando devem ser abordados:
Crise = problema
Clima = problema
Política = problema
Economia = problema
Trabalho = problema
Escola = problema
Casamento = problema
Amigos = problema
Sogra = problema
Nora = problema
Marido = problema
Mulher = problema
Filho = problema
Adolescente = problema
Trânsito = problema
Desemprego = problema
Calor = problema
Frio = problema
Peso = problema
Estacionamento = problema
Chefe = problema
Colega = problema
Naturalmente, a lista poderia ser muito mais extensa. Fico na amostra. Mas espero que a lista não aumente tanto ao longo do tempo. Em primeiro lugar, isso representaria um empobrecimento de linguagem. Em segundo, evidenciaria a nossa estagnação na cultura do "coitadinho". 
Espero poder falar no futuro das várias funções estilísticas do termo "solução".

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