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Mostrando postagens de 2018

Quem tem medo de tradutores automáticos?

Os tradutores automáticos irão eliminar os tradutores. Os tradutores automáticos não são confiáveis. Os tradutores automáticos são indispensáveis. Os tradutores automáticos estimulam a preguiça mental. Adoro os tradutores automáticos. Alguns não são completamente automáticos, como o TRADOS, um software de tradução assistida, na qual o tradutor trabalha contemporaneamente com o programa, aceitando as traduções sugeridas ou corrigindo as propostas, criando dessa forma uma memória para trabalhos futuros. O TRADOS não trabalha com frases inteiras, mas com blocos de palavras, isso aumenta a sua capacidade de encontrar repetições e propor as traduções certas para cada segmento. Sem dúvida, o Google Tradutor é a ferramenta mais usada no mundo, especialmente pelo público não profissional, que precisa resolver algum problema de compreensão e não quer investir no custo de uma tradução profissional. O Google melhorou bastante ao longo dos últimos anos, inclusive oferecendo a possibilidad

O ANEL E O PADRE

Não acredito que se possa falar sobre fake news sem ler Antônio Vieira. Se eu fosse a soberana absoluta no reino das avaliações escolares, o Sermão da Sexagésima seria o ponto de partida para discorrer sobre o assunto. O que Antônio Vieira nos diz de tão interessante para valer um salto no passado, a fim de compreender o futuro que nos espera? Vieira nos dá uma lição sobre todos os aspectos fundamentais para a conversão. Explica e explicita esses aspectos por meio de uma estrutura lógica impecável. Guia o leitor na compreensão do que afirma, utilizando os próprios aspectos que apresenta. Vieira nos ensina que palavras não são o bastante. “Para falar ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias obras”, afirma. Muita gente, inclusive quem já possui diploma, anda precisando reler o Padre Vieira, penso comigo. Reler para se defender, reler para compreender, reler para reconhecer onde há somente palavras e onde ficaram as obras, reler para separar o que tem fu

AULA DE PORTUGUÊS

Este é um artigo sobre a língua portuguesa. Não. É um artigo sobre a história. Não. É um artigo sobre a psicologia. Não. É um artigo sobre a política. Não. Este é um artigo sobre ser humano. Manchete: “Homem é morto com doze facadas”. Não, não era um homem, era Moa do Katendê, mestre de capoeira, referência cultural para artistas do nível de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Este artigo é sobre a língua portuguesa: eu sempre explico aos meus alunos a função das palavras indefinidas. Elas servem para ocultar e retirar responsabilidades. Se eu digo: “todos devem avaliar com cuidado esse crime abominável”, ninguém vai assumir a responsabilidade de fazer isso. Para usar uma palavra indefinida mais comprometedora, devo dizer, no mínimo: “cada leitor deve avaliar com cuidado esse crime abominável”. Cada leitor, ou seja, você, leitor, que ainda não abandonou este artigo. Mas espere: este não é um artigo sobre a língua portuguesa. É um artigo sobre a história. Em 1942, uma empresa na Alem

DOIS VEADOS

Esta semana causou polêmica a afirmação feita por um candidato à presidência de que um certo livro que aborda a sexualidade na infância estava sendo distribuído nas escolas. Houve chuva de desmentidos: um deputado desmentiu, a editora desmentiu, os jornais falaram da mentira. Se tivesse falado de um livro importante, difícil, daqueles que quase ninguém lê, poderia ter passado por beletrista, pedante, retórico, mas não teria causado a avalanche de comentários que provocou. Teria chamado a atenção daquela minoria de leitores atentos, que não é a maioria dos seus eleitores. Com a mentira, mais que deslavada, atraiu a atenção de todos. É uma estratégia eficaz para ser lembrado, embora seja um mal-caratismo sem tamanho. O fato pode causar sensação por razões políticas, culturais, antropológicas, mas não deveria surpreender. A literatura não serve para nada, mas fornece um acervo de retratos da alma humana e estimula a nossa capacidade de análise. Quem lê criticamente não é pego de surpre

ODE MAIS QUE PERFEITA: PRETÉRITOS

Já não se encontram pessoas que usem o pretérito mais-que-perfeito. Que usem simplesmente, como eu gostaria que usassem: claro, perdemos o verbo, mas não o vício de ter caprichos. Não digo que não haja pedantes que utilizem o pretérito mais-que-perfeito simples, mas estes hoje foram suplantados pelos que se orgulham do baixo calão, da vulgaridade e da ignorância. Venceu a maioria. Aos pedantes hoje é reservado o silêncio de cristal e a indiferença de cristaleira, como o brilho de um tempo que amarelou. Na realidade, não é pela falta que me fazem os pedantes que lamento a ausência do nosso pretérito mais-que-perfeito. É que o desejo, a expectativa, a esperança eram mais que perfeitos, além de serem necessários. Pudera eu acabar com essa tristeza. Quem me dera espalhar sorrisos. Prouvera Deus! A gente pode até viver sem o pretérito mais-que-perfeito com esse uso particular: os italianos, que desconhecem essa opção sentimental, mais do que gramatical, sobrevivem trocando essa linda forma

SÃO JOÃO E A MÚSICA

Os nomes das sete notas musicais são as iniciais dos seguintes versos, de Paulo, o Diácono, em latim: Ut queant laxis Re sonare fibris Mi ra gestorum Fa muli tuorum Sol ve polluti La bii reatum S ancte I oannes O poema era usado como forma mnemônica para facilitar a aprendizagem da música por Guido d’Arezzo, considerado o inventor do primeiro sistema moderno de notação musical, por volta do ano mil. Em torno de 1600, Giovanni Battista Doni propôs a substituição de “Ut” por “Dó”. Alguns dizem que “Ut” era de difícil pronúncia, outros dizem que Doni considerava que “Dó” possuía um som harmônico. O nome da nota provavelmente é uma referência a “Doni”, o seu sobrenome. Os versos usados por Guido d’Arezzo podem ser assim traduzidos: Para que possam com livres vozes cantar as maravilhas das ações os servos teus retire dos contaminados lábios o pecado Ó, São João. (A imagem é um detalhe da obra San Giovanni, de Caravaggio)

ESQUERDA OU DIREITA?

Recentemente comentei que adoro comédias, mas raramente gosto de comédias. É que a comédia precisa ter duplo sentido e a risada acontece quando percebemos a duplicidade. A comédia - e nisso sou muito aristotélica - precisa causar um rebaixamento. Portanto, não acho graça em rir da desgraça alheia. Acho plausível fazer comédia com figuras públicas e com detentores do poder. É aí que funciona o rebaixamento. Personalidades públicas se divertem com as comédias inspiradas em sua trajetória - quando são inteligentes e têm senso de auto-ironia. Mas o gênero de que mais gosto precisa ter ainda um outro nível de interpretação, envolvendo a própria subjetividade do leitor. Levei alguns dias para publicar este texto porque estava pensando no que me faz rir como leitora. Depois de garimpar a memória e as emoções prazenteiras, lembrei de um dos contos mais divertidos de Moacyr Scliar: A Orelha de Van Gogh. O texto conta a história de um homem mediano, com medianos problemas, que no cotidiano d

LITERATURA COBAIA

A falta de responsabilidade jornalística e, digamos, também as piores intenções pseudojornalísticas são fatores determinantes para a disseminação de notícias falsas. Essa péssima prática usa um dos mais caros instrumentos da criação literária: a verossimilhança. Não pode haver falsa notícia se ela não tiver aparência de notícia confiável. Nem digo verdadeira, porque este seria outro campo espinhoso, mas pelo menos digna de credibilidade. Uma notícia confiável, por exemplo, pode ser sectária, apresentar um ponto de vista claro; não por isso será, necessariamente, falsa. O mais correto seria falar de informação parcial. A notícia falsa é produzida como a falsificação de um quadro ou, melhor seria a comparação, a publicação de um falso manuscrito literário. Jorge Luis Borges já tinha previsto tudo naquele conto genial que é Pierre Menard, autor do Quixote. A literatura pós-moderna também brincou bastante com isso. Lembro, por exemplo, do romance Em Liberdade, de Silviano San

A TRADUÇÃO, ARTE ANALÓGICA

Tradutores devem ser tudólogos e ter um bom aparelho digestivo. Esses são dois entre os muitos requisitos necessários para competir com as máquinas. Aviso logo: não tenho nada contra as traduções automáticas ou traduções assistidas. Uso cotidianamente esses recursos para otimizar o trabalho. Os programas de tradução assistida, em especial, também possuem a vantagem de uniformizar a linguagem, evitando disparidades terminológicas. Claro, a uniformidade é uma qualidade do texto traduzido, se o que se espera do texto é isso. Nada mais equivocado que aplicar tal critério a um texto com grande peso conotativo. Além do mais, em qualquer situação, nunca confio completamente nas máquinas. Para fazer um bom trabalho, mesmo que empregue os melhores recursos digitais, reviso tudo manualmente, no melhor estilo analógico. Nos últimos anos, o desenvolvimento de tecnologias de tradução automática foi espantoso. Entretanto, há muitas mãos humanas por trás disso. Um exemplo está no uso das memórias d

O QUE A LITERATURA ENSINA SOBRE A REDE

Todo autor constrói personagens e a própria autoria é um elemento constitutivo da ficção. O autor e a pessoa física a que ele se refere não coincidem. Quando falamos de autoria, de personagem autobiográfica e de outras dimensões ficcionais criadas literariamente, não estamos falando da pessoa que juridicamente é responsável pela autoria, mas estamos falando da "persona", da máscara literária que possui pontos de contato com a pessoa real, mas nunca de forma perfeitamente coincidente. O que podemos saber do autor é uma parte da sua personalidade; caso faça literatura autobiográfica, podemos saber um pouco do que transforma em personagem. Penso nos tantos autores que surpreendem pela timidez, sendo tão articulados nos textos escritos; ou naqueles que prezam a discrição, sendo exuberantes na linguagem. Pensem no Luis Fernando Verissimo ou no João Guimarães Rosa, por exemplo. O signo não é a coisa, dizem os linguistas. E quando escrevo "máscara" estou apenas indica

DEU NA TV

Esses dias o meu filho me perguntou se eu tinha certeza de que as vacinas não fazem mal para a saúde. Respondi como uma pessoa que conhece o método científico: no momento atual, as vacinas são a melhor proteção para evitar as doenças contra as quais elas agem. Ele replicou, como fazem muitas pessoas que desconhecem os métodos da ciência, acham que a ciência possui interesses econômicos, colocam as explicações científicas em nível de opinião, ou pior, são movidas apenas por um complotismo alimentado por teorias de conspiração. Ele argumentou: quem disse que as pessoas que desconfiam das vacinas não estão certas? Para responder a essa pergunta é preciso explicar que a ciência não é o campo da verdade. É o campo das hipóteses e dos testes das hipóteses. Se algum dia as "teorias alternativas" (coloco entre aspas porque ditas teorias carecem de elementos que demonstrem materialmente o que afirmam) passarem pelo teste da verificabilidade e da repetibilidade, então poderemos afi

COISIFICAÇÃO, CONSEQUÊNCIAS SEMÂNTICAS

Estava lendo Darcy Ribeiro quando me deparei com um termo que o autor certamente não usou por acaso: ao comentar o processo de escravidão, ele falou de importação de escravos. Algumas linhas adiante, voltou a repetir que os escravos eram importados. O termo "importação" doeu na carne. Estou convicta de que Darcy Ribeiro usou o termo para causar mal-estar, para evidenciar a coisificação de seres humanos durante o regime escravocrata. Um regime que durou trezentos anos. Mas o cotidiano nos reserva outros termos que surpreendem e sobre os quais nem sempre nos questionamos. Expressões como "recursos humanos" ou "capital humano" evidenciam o valor econômico ligado às pessoas inseridas no processo de produção. As pessoas possuem qualidades, ou qualificações, visto que as expressões mencionadas são empregadas na esfera profissional. Serem tratadas como "recurso" ou como "capital" revelam uma perspectiva sobre a sua condição, não é? T

BERINGELA OU BERINJELA?

Ah, a berinjela, ou beringela, como quiserem. Quem não passou pela penitência escolar de ter de demonstrar conhecimentos ortográficos na mais tenra idade, escolhendo entre as letras "G" ou "J"? Não lembro como completei a palavra quando era criança, mas lembro que não entendia a regra e que o único jeito para solucionar o problema era decorar a forma indicada pela professora. Suponho que metade da turma acertou o exercício e a outra metade errou a loteria. Mas a pior notícia é que berinjela está certo. E beringela também está. Beringela é uma forma mais antiga, que sugere, pelo uso da consoante "G", que a palavra foi plenamente integrada na língua. Os portugueses continuam escrevendo assim até hoje. Berinjela é de uso corrente no Brasil e indica, por meio da consoante "J", que a palavra é de origem estrangeira. A grafia com "J" ganhou espaço quando se tomou consciência de que a palavra tinha sido introduzida na língua por meio do

SINAL VERMELHO: NÃO BUZINE

Dezenas de romanos foram multados na semana passada porque uma sinaleira travou no sinal vermelho e os motoristas buzinaram para sinalizar que precisavam atravessar o cruzamento. Formou-se uma fila gigantesca, os carros ficaram emaranhados, os guardas municipais ficaram perdidos e o sinal não abriu. Diante da indignação dos motoristas, a autoridade local fez valer a sua voz e saiu largando multa para cada automóvel que buzinava. Muitos protestaram, dizendo que foram punidos em lugar de outros: os guardas podem ter autoridade, mas nem sempre têm ouvido (ou capacidade de interpretação dos signos). Para ser honesta, casos como esses são raros em Roma. Em geral, a autoridade é mais prudente: na dúvida, deixa passar. O pessoal estaciona em fila dupla: quando os guardas municipais se aproximam, começam a tocar apito para que os motoristas retirem os carros do local proibido e escapem da infração. Uma chance não se nega a nenhum cristão. Mas os tempos estão mudando: os cidadãos estão organ

DO PALAVRÃO À PÓS-VERDADE

Parece língua do "pê", mas se trata de estratégia comunicativa. O fato chamou a atenção dos jornais italianos: um partido, surgido da irritação dos eleitores em relação às políticas do governo, organizava comícios usando como chamada o mais conhecido e utilizado palavrão em língua italiana. Para simplificar e tornar digerível às camadas amplas da população, sem ferir a suscetibilidade de ninguém, os encontros passaram a ser denominados V-Day.  Com o tempo, o partido cresceu, elegeu-se e governa. Os militantes e também as lideranças do partido continuaram a utilizar insultos como forma de ataque aos partidos e aos políticos adversários. Era a técnica para surfar na onda da insatisfação da população, que deu alguns resultados. Agora que o partido está entre os maiores da Itália, os dirigentes decidiram que os palavrões não podem mais ser utilizados. E os pré-candidatos, que por muito tempo usaram a técnica, foram excluídos das listas para a escolha interna dos candidatos à