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Mostrando postagens de 2011

PARA AS CALENDAS GREGAS, OU À GUISA DE VOTOS PELO AVESSO

Calendas era o primeiro dia de cada mês do calendário romano na Antiguidade. “Para as calendas gregas” é uma daquelas expressões ainda vivas no uso popular da língua italiana, e quer dizer simplesmente “nunca”, porque as “calendas” eram romanas, não existiam em grego. Usamos a expressão também em português, mas de modo muito mais literário: a alma devota do nosso povo prefere o “dia de são nunca”, que não deixa de ter a sua beleza. Mas voltando às calendas, dizem que a expressão era usada frequentemente pelo imperador Augusto para referir-se às pessoas que sempre adiavam o pagamento das suas dívidas. Nada mais atual, agora que o tempo nos impõe olhar no calendário cheio de folhinhas novas todas as agruras que nos esperam no ano novo. Eis, portanto, a lista dos meus votos do que pode ser adiado para as calendas gregas: 1) deixe para o dia de são nunca aquele objeto supérfluo de que você nunca vai precisar e que um dia vai jogar fora poluindo ainda mais o planeta; 2) diante d

O MAIS-QUE-PERFEITO SOLTA O VERBO

Ele nasceu para ser o orgulho da família: frequentar poesias, discursos pomposos, bulas, crônicas de reais estirpes, tratados. Assim reza a norma, que os amigos da gramática continuam a pregar, para maior fama do pretérito mais-que-perfeito. O que pouca gente fala é que o varão tem uma queda pelas rodas populares, impondo-se e tirando o lugar do imperfeito do subjuntivo. Pudera! O imperfeito do subjuntivo aproxima-se com ar submisso de quem está sempre à espera de condições favoráveis para entrar em cena... o mais-que-perfeito não perde tempo e toma o seu lugar. “Quem me dera ser como você” – ensina o mais-que-perfeito ao parceiro subjuntivo – “É desse modo que fala o povo que me ama” – completa com orgulho indicativo. A plateia vibra e repete, carrega o mais-que-perfeito nos braços sem saber quem está colocando no trono. E enebriado pela sua popularidade, o mais-que-perfeito volta para o seio da família, aos textos solenes, e espanta-se quando o leitor considera-o pedante e esnobe

ESCAMBO

A vida deu-me tudo de que preciso, mas não estou satisfeita porque ainda não dei à vida tudo que posso. (Nem todo jogo de palavra é um capricho poético)

TESTE: QUE TIPO DE FALANTE VOCÊ É?

Responda às questões abaixo e descubra qual é o seu perfil de falante na hora de usar a língua portuguesa. 1. Quando você escreve um email para um amigo: a) não se deixa levar pela informalidade, afinal de contas, um email é uma comunicação escrita e a escrita é sempre formal b) admite uma certa informalidade, pois na esfera pessoal uma rigidez excessiva pode ser confundida com pedantismo c) mistura elementos formais e informais, pois você gosta de ser reconhecido por seu estilo pessoal d) se o amigo é formal, usa termos informais, se o amigo é informal, faz o contrário, pois gosta de causar impacto e) escreve a primeira coisa que vem à cabeça, você não usa a mente com os amigos, mas o coração 2. Seu chefe pede que você escreva um comunicado para os funcionários: a) você abraça-se às gramáticas e aos dicionários para não correr o risco que cometer algum deslize b) você procura adequar a linguagem ao padrão médio empregado dentro da empresa, para causar mais iden

A MINHA REPÚBLICA É A LÍNGUA PORTUGUESA

Os literatos que me perdoem, mas a paródia é fundamental. Nas últimas décadas a paródia tem sido muito mais que uma função literária, assumindo de fato um valor cultural. A paródia irônica, a que diz rebaixando e exaltando o contrário, para usar conceitos bem simples, foi instrumento de toda uma corrente literária, tendo Moacyr Scliar entre seus melhores representantes na literatura brasileira. Se a língua portuguesa é fator de agregação, de identificação dos seus falantes em torno de uma base cultural comum, se é pátria, então eu quero derrubar o totem e exigir república já! Sei que essa é uma conversa velha, basta ler os modernistas. Basta ler... Quanto temos lido (independentemente do fato de concordar ou não com os valores do modernismo)? Os resultados dos exames de língua portuguesa na escola brasileira têm-me deixado simplesmente chocada. Quando li os resultados de uma das nossas capitais, com um resultado médio de 3,4 nos testes de competência linguística, fechei o site e co

O QUE A PASSIVA NÃO DIZ (E O QUE ISSO QUER DIZER)

Brasileiro que fala bem mais cedo ou mais tarde desliza na voz passiva. Não que se trate de erro gramatical: pode ser exagero, pode ser descuido, pode ser uma pequena maldade. A passiva é a forma da dissimulação estudada, das pequenas deselegâncias, da malandragem e do pedantismo. É a luva perfeita para bater na cara dos resignados. É o metro que distancia e justifica a impessoalidade do jornalismo que aposta nos fatos e não nas fontes. Nada contra, o seu uso é legítimo e aprovado pelas normas da língua. Ai de mim, atacar uma passiva! Até gosto, como quem gosta de feijão por força do hábito. Mas é preciso lembrar que nem todo mundo comunica do mesmo mesmo modo: passivo. E mesmo no nosso nobre idioma há quem defenda o uso da voz ativa, direta, sem rodeios, sem elementos ocultos. Seguem três casos em que a passiva aparece com frequência, com comentário e juízo de valor:       PARA DAR UMA NOTÍCIA DESAGRADÁVEL É chato, mas às vezes o cartão de crédito fica bloqueado porque

ONDE HÁ FOGO, HÁ FUMAÇA

Detectar uma mentira não é brincadeira. Bem mais fácil é mostrar por que uma mentira é mentirosa. Falar sobre a mentira é chover no molhado: vista do ponto de vista psicológico, jurídico, filosófico, religioso, sociológico, não há quem não tenha descrito as suas várias facetas. E as estruturas da língua? Há algo nelas que nos permita pegar uma mentira na botija? Apesar do risco de pecar por superficialidade, vale a pena tocar no assunto: quem gosta da língua de verdade não pode ignorar que a mentira tem um peso e um valor que varia de cultura para cultura. Vejamos alguns exemplos para ver como ela se apresenta e como podemos enfrentar as suas armadilhas. Cuidado com palavras que excluem : - Somos só amigos. (amizade colorida?) - De jeito nenhum . (hummm...) Atenção com palavras indefinidas : - Alguém me contou. (nome?...) - Andam dizendo... (o sujeito indefinido é o álibi perfeito de todo mentiroso) O diminutivo não podia ficar fora da lista: - Temos um pr

EU ENSINO, VOCÊ ENSINA

Dia do Professor , data boa para pensar no que ensinamos quando ensinamos a língua portuguesa. Para começar: cada falante é um professor de língua portuguesa. Quer dizer, fornecemos, conscientemente ou não, um modelo de língua para quem está ao nosso redor. E fornecemos um modelo usando todos os recursos à nossa disposição: palavras, cadência, gestos, ritmo. Os pais são poderosos professores de língua para seus filhos. Porém, quem escolhe ser professor, não substitui os pais, nem os tios (ou tias). Além de continuar a fornecer um modelo de língua para os alunos, o professor tem o compromisso de conduzir os estudantes pelos caminhos tortuosos que o idioma oferece. As receitas para fazer isso são muitas, naturalmente cada professor deve ter a sua. Eu mentiria se dissesse que a minha fórmula está testada e aprovada. Está me convencendo, mas precisei de anos para acertar a combinação dos ingredientes. Em primeiro lugar, é preciso esquecer o título, jogar fora o diploma. O conhecim

OS 7 PECADOS PRONOMINAIS

Certa vez dei para meus alunos um exercício divertido, que consistia em descobrir 7 erros de colocação de pronomes. Retomo aqui a discussão, pois os pronomes não confundem apenas os estudantes de português como língua estrangeira. O assunto levanta polêmicas intestinas, como aquelas sagas familiares em que filhos rebelam-se à tirania dos pais e os pais escandalizam-se com o mundo que muda e que não conseguem acompanhar. Para dizer em termos culturais: é sabido que, em matéria de pronomes, nós, brasileiros, gozamos de péssima reputação junto à pátria-mãe da língua portuguesa. Não se pode tapar o sol com a peneira, portanto é preciso usar as lentes adequadas. Segue o meu esquema prático para manter um jeitinho brasileiro, sem provocar demais a justa suscetibilidade dos falantes da nossa pátria-irmã. Regra de ouro: O pronome oblíquo costuma ter a função de complemento do verbo. Por isso, se não há outra razão que justifique, deve ser colocado após o verbo. Exemplo: Os encontros realizam

VOCÊ FALA COM A CABEÇA OU COM O CORAÇÃO?

Se você reconhece os acentos tônicos, a correta separação silábica, os encontros vocálicos e consonantais, já tem as bases para uma boa escrita e para os principais concursos públicos. Quando conversamos, porém, o bate-rebate do fala-escuta geralmente não nos dá tempo para avaliar nas entrelinhas o nosso interlocutor. Para desenvolver as nossas habilidades oratórias e de escuta ativa o mercado da formação oferece muitas possibilidades, entre as quais as técnicas de programação neurolinguística, geralmente com custos elevados para o interessado. A velha e tradicional gramática normativa também fornece soluções eficazes e úteis: trata-se das regras referentes aos acentos de insistência, que aparecem na fala quando impregna de afetividade ou de ênfase as palavras pronunciadas. Se o acento é intelectual, recai sempre na primeira sílaba da palavra (é mais evidente se não coincidir com o acento tônico). Além disso, é evidente uma maior intensidade na pronúncia dessa sílaba (pode ser mais int

INFINITO INFINITIVO

Ele é da turma dos vilões de respeito. Mais de oitocentas mil páginas na internet discutem o que ele é, como é usado e para que serve. Não há vestibular que o deixe de lado. É uma das nossas marcas linguísticas. Causa polêmica entre bacharéis e simples mortais. É confundido com o futuro do subjuntivo (e o pior é que há teses que defendem que o infinitivo derive de fato do futuro do subjuntivo – embora essa não pareça ser a linha dominante entre os filólogos). Pode ser facultativo. É sinal de distinção que pode jogar a discussão mais para o terreno da estilística que para o da sintaxe/morfologia. Há quem diga que não é uma invenção vernacular, mas uma continuação de formas do latim vulgar, presentes também no galego e no mirandês, únicas línguas neolatinas a apresentarem essa característica. O grande Camões não se faz de rogado, e coloca cá e lá um infinitivo pessoal n’Os Lusíadas, que é o monumento fundador do português moderno. O infinitivo dá livro: desde os prontuários para principi

OBRIGADA

Retorno gratificante das férias: hoje, ao retomar o blog, verifiquei as visitas à página, que acaba de atingir mil leitores. Obrigada a todos nas várias partes do mundo e aos quinhentos leitores brasileiros que me fazem sentir mais próxima, aqui no Lácio, do nosso inculto e belo idioma.

ANTÍDOTO PARA O ÓCIO

Temporada de férias, temporada de caça pirata ao leitor, que com distração entrega-se ao ócio como se fosse dever colocar o cérebro na reserva. É o pudor das férias, a vergonha de seguir o ritmo habitual da vida, como se fosse um vício trabalhar. Talvez seja, porque já me sinto em crise de abstinência. De todo modo, as férias têm as suas vantagens: permitem retomar velhos hábitos, como ler jornal impresso, sem se render ao primeiro parágrafo da notícia. Na correria cotidiana é raro ir além da síntese e os bons redatores sabem disso. Por essa razão colocam todos os elementos fundamentais referentes ao fato no parágrafo de abertura do artigo. São os conhecidos QUEM, COMO, O QUE, ONDE, QUANDO, POR QUE. A boa surpresa é que o tempo livre também dá oportunidades únicas aos redatores excelentes, que capturam o leitor em via de extinção, atraindo-o na selva de informação com as melhores iscas. Os textos mais apetitosos para leitores que querem cair na rede contêm dados e conceitos claros, enc

SUFIXO, SUFIXO MEU

Existe algum no mundo melhor do que –EIRO? Há quem goste de –ISTA e quem prefira –MENTE. Eu não nutro grande simpatia por nenhum dos dois. Implico com –ISTA por sua fama especializada, que tende a ver tudo por uma parte, é uma metoníma desajeitada. –MENTE, ao contrário, parece arroz de festa: exagera e é preciso apelar para o rigor normativo a fim de salvar o estilo, eliminar o eco e poupar os nossos ouvidos. Admitidas as antipatias, confesso que perdoo todos os –INHOS, nossa marca registrada: estão aí prontos para enternecer, ironizar, enfatizar e o que mais se quiser. –INHO é pau pra toda obra. Gosto também de –DOR, mas o meu preferido é –EIRO: é um daqueles sufixos sempre dispostos a agregar-se, dando função a atividades práticas, aplicadas, àquelas que deveriam ser melhores (mas a gente faz o que pode!) e àquelas das quais seria melhor não falar, mas comentamos com um toque de galhardia. Vai do padeiro ao porteiro, do engenheiro ao enfermeiro, do arruaceiro ao bagunceiro, do

EM VIA DE EXTINÇÃO 4

Desta vez publico uma lista sujeita a reclamações. Porque os números mentem, mesmo de boa fé. Trata-se de tema delicado, a política. Quando comecei a pescar as palavras, achei que estariam perdidas em notícias de arquivo. Para minha surpresa estão aí, sendo usadas para descrever, insultar, ironizar, e se não aparecem mais é porque talvez alguém tente esconder o jogo. Trata-se de pistolão, biônico, chapa branca, correligionário, cabo eleitoral, nepotismo, cabresto. Na coluna ao lado, em ordem alfabética, os comentários.

SER BRASILEIRA É

É flexionar os nomes no gênero feminino É ter etimologias abundantes É usar verbos no futuro É ir além dos regionalismos É assumir o seu idioleto É ter direito à polissemia É fazer da pronúncia uma música que encanta É gritar aos surdos que a língua é mulher Quando certa Ou quando incorrigível Ser brasileira é reconhecer que a alma Mora na nação Chamada Língua Portuguesa

LÍNGUA COM PRAZO DE VALIDADE

A história começa com os exames de língua estrangeira: há várias instituições que fornecem certificados com prazo de validade estabelecido. Em alguns casos, depois de dois anos a pessoa precisa submeter-se novamente a teste para mostrar o que sabe. Por trás da revalidação periódica das provas provalvemente subjaz a ideia de que a competência em um idioma é uma situação sujeita a avanços e retrocessos. De fato, a língua é dinâmica e os falantes estão sujeitos a isso, de modo que um conhecimento adquirido não pode ser considerado um fenômeno estanque no tempo. E em relação à língua materna? Essa preocupação emerge por meio dos estudos sobre o analfabetismo funcional. O que é isso? É o inexistente ou parco conhecimento da língua escrita (o que se traduz em quatro anos de instrução formal ou menos, sem contar a possível perda gradual de familiaridade com a língua depois da interrupção dos estudos, o que coloca o nosso analfabetismo na estratosférica faixa de 75% da população adulta). Pa