"Só sei que nada sei".
Um dos momentos mais gloriosos da ironia encontra-se nos primórdios da filosofia ocidental. Graças aos discursos platônicos, hoje existe uma categoria específica de ironia, a ironia socrática.
Para "parir" as ideias, Sócrates, a personagem dos discursos platônicos, reunia para um bate-papo uma plateia, à qual confessava não conhecer determinado assunto, mas estar muito interessado em entendê-lo. A conversinha mansa ia adiante entre uma pergunta e uma resposta e aos poucos o conhecimento emergia.
Era uma mentira descarada essa do Sócrates, porque ele sabia bem do que falava, mas se valia da ironia ("eu não sei, não...") para alimentar o debate e conduzir os participantes às suas ideias. Esse "emergir" gradual é o chamado método maiêutico, que significa "parir".
Parir ideias.
Escrever a tese foi um parto.
Escrever um livro é como ter um filho.
O nosso cotidiano ainda está impregnado dessas ideias lançadas na Antiguidade (e, para continuar na metáfora do parto, saibam que "impregnar" vem da palavra "prenha": estar prenha, estar grávida. Que bom é gestar ideias, estar impregnada de ideias, estar prenha de ideias). Isso acontece porque o diálogo nunca deixou de ser um poderoso instrumento de conhecimento, conhecimento que se faz de forma compartilhada. Como nas redes sociais. É herético, mas é assim. No mar de redundâncias, de "copio e passo", de "curtir", de bobagens, de insultos, de tumultos, a rede oferece espaço para o confronto e para a reelaboração de ideias.
Se Platão nascesse hoje, faria um banquete virtual no Facebook e o seu avatar se chamaria Sócrates. Platão usaria a ironia como instrumento primordial para chamar a atenção dos seus interlocutores, para evidenciar certos absurdos que avassalam a nossa vida prosaica, que precisam ser explicados nos mínimos detalhes a fim de que as coisas não permaneçam naquele nível de fatalismo, de impotência, naquele nível trágico tão oposto à consciência filosófica do mundo.
E o seu avatar, Sócrates, seria enxovalhado, e o povo na rede escreveria com maiúsculas "CICUTA! CICUTA!" para abafar a sua voz. Mais ou menos como fazem de vez em quando com os nossos escritores, quando usam a ironia para evidenciar as vozes ridículas, as ideias mesquinhas que alimentam a nossa tragédia. Foi assim com o Luis Fernando Verissimo, há anos, quando chamou o Lula de pau-de-arara; recentemente foi assim com o Antonio Prata, cuja ironia sobre a sua conversão à direita gerou um fenômeno impressionante nas redes e fora dela; foi assim com o Amilcar Neves, no menos comentado Diário Catarinense. Todos eles, após receberem o aplauso dos mesquinhos, foram lapidados publicamente pela mesma massa inculta. E ai de quem dissesse "atire a primeira pedra...": "CICUTA! CICUTA! VAI MORRER PREGADO!", esse é o tipo de slogan de quem não gosta de diálogo, de quem se recusa a colocar em discussão as próprias ideias.
Apesar disso, na arena das redes sociais, a ironia continua a ser um instrumento eficaz, certeiro, veloz, capaz de fazer avistar com uma tirada espirituosa um iceberg há duas braçadas do nosso barco furado. Como em todo naufrágio, alguns saberão usar o salva-vidas, outros vão afundar sem entender como e por quê...
Eu gostaria de um outro mundo possível... um mundo que não precisasse desesperadamente de ironia para sobreviver. Um mundo lento, com tempo para ler volumes caudalosos e para apreender aos golinhos as pílulas dequele saber fragmentado que construímos com tanto esforço. Esse mundo não existe. Ou existe na terra do Papai Noel, que fica bem longe da minha casa.
Portanto, viva a ironia. Mas cuidado: Platão era o mesmo sujeito escorbútico que odiava sofistas e demagogos. Na era das redes sociais, a retórica vazia é o maior perigo. É o naufrágio de qualquer tentativa de diálogo construtivo. De crítica. É o triunfo da tirada fácil, do sucesso alcançado com efeitos especiais da linguística: jogos de palavras, metáforas... O doutor escorbútico tinha razão quando rodava a baiana com essa gente. Eu também rodo a baiana e fico escorbútica uma vez por semana!
Um dos momentos mais gloriosos da ironia encontra-se nos primórdios da filosofia ocidental. Graças aos discursos platônicos, hoje existe uma categoria específica de ironia, a ironia socrática.
Para "parir" as ideias, Sócrates, a personagem dos discursos platônicos, reunia para um bate-papo uma plateia, à qual confessava não conhecer determinado assunto, mas estar muito interessado em entendê-lo. A conversinha mansa ia adiante entre uma pergunta e uma resposta e aos poucos o conhecimento emergia.
Era uma mentira descarada essa do Sócrates, porque ele sabia bem do que falava, mas se valia da ironia ("eu não sei, não...") para alimentar o debate e conduzir os participantes às suas ideias. Esse "emergir" gradual é o chamado método maiêutico, que significa "parir".
Parir ideias.
Escrever a tese foi um parto.
Escrever um livro é como ter um filho.
O nosso cotidiano ainda está impregnado dessas ideias lançadas na Antiguidade (e, para continuar na metáfora do parto, saibam que "impregnar" vem da palavra "prenha": estar prenha, estar grávida. Que bom é gestar ideias, estar impregnada de ideias, estar prenha de ideias). Isso acontece porque o diálogo nunca deixou de ser um poderoso instrumento de conhecimento, conhecimento que se faz de forma compartilhada. Como nas redes sociais. É herético, mas é assim. No mar de redundâncias, de "copio e passo", de "curtir", de bobagens, de insultos, de tumultos, a rede oferece espaço para o confronto e para a reelaboração de ideias.
Se Platão nascesse hoje, faria um banquete virtual no Facebook e o seu avatar se chamaria Sócrates. Platão usaria a ironia como instrumento primordial para chamar a atenção dos seus interlocutores, para evidenciar certos absurdos que avassalam a nossa vida prosaica, que precisam ser explicados nos mínimos detalhes a fim de que as coisas não permaneçam naquele nível de fatalismo, de impotência, naquele nível trágico tão oposto à consciência filosófica do mundo.
E o seu avatar, Sócrates, seria enxovalhado, e o povo na rede escreveria com maiúsculas "CICUTA! CICUTA!" para abafar a sua voz. Mais ou menos como fazem de vez em quando com os nossos escritores, quando usam a ironia para evidenciar as vozes ridículas, as ideias mesquinhas que alimentam a nossa tragédia. Foi assim com o Luis Fernando Verissimo, há anos, quando chamou o Lula de pau-de-arara; recentemente foi assim com o Antonio Prata, cuja ironia sobre a sua conversão à direita gerou um fenômeno impressionante nas redes e fora dela; foi assim com o Amilcar Neves, no menos comentado Diário Catarinense. Todos eles, após receberem o aplauso dos mesquinhos, foram lapidados publicamente pela mesma massa inculta. E ai de quem dissesse "atire a primeira pedra...": "CICUTA! CICUTA! VAI MORRER PREGADO!", esse é o tipo de slogan de quem não gosta de diálogo, de quem se recusa a colocar em discussão as próprias ideias.
Apesar disso, na arena das redes sociais, a ironia continua a ser um instrumento eficaz, certeiro, veloz, capaz de fazer avistar com uma tirada espirituosa um iceberg há duas braçadas do nosso barco furado. Como em todo naufrágio, alguns saberão usar o salva-vidas, outros vão afundar sem entender como e por quê...
Eu gostaria de um outro mundo possível... um mundo que não precisasse desesperadamente de ironia para sobreviver. Um mundo lento, com tempo para ler volumes caudalosos e para apreender aos golinhos as pílulas dequele saber fragmentado que construímos com tanto esforço. Esse mundo não existe. Ou existe na terra do Papai Noel, que fica bem longe da minha casa.
Portanto, viva a ironia. Mas cuidado: Platão era o mesmo sujeito escorbútico que odiava sofistas e demagogos. Na era das redes sociais, a retórica vazia é o maior perigo. É o naufrágio de qualquer tentativa de diálogo construtivo. De crítica. É o triunfo da tirada fácil, do sucesso alcançado com efeitos especiais da linguística: jogos de palavras, metáforas... O doutor escorbútico tinha razão quando rodava a baiana com essa gente. Eu também rodo a baiana e fico escorbútica uma vez por semana!
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