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A TRADUÇÃO, ARTE ANALÓGICA

Tradutores devem ser tudólogos e ter um bom aparelho digestivo. Esses são dois entre os muitos requisitos necessários para competir com as máquinas.
Aviso logo: não tenho nada contra as traduções automáticas ou traduções assistidas. Uso cotidianamente esses recursos para otimizar o trabalho. Os programas de tradução assistida, em especial, também possuem a vantagem de uniformizar a linguagem, evitando disparidades terminológicas. Claro, a uniformidade é uma qualidade do texto traduzido, se o que se espera do texto é isso. Nada mais equivocado que aplicar tal critério a um texto com grande peso conotativo. Além do mais, em qualquer situação, nunca confio completamente nas máquinas. Para fazer um bom trabalho, mesmo que empregue os melhores recursos digitais, reviso tudo manualmente, no melhor estilo analógico.
Nos últimos anos, o desenvolvimento de tecnologias de tradução automática foi espantoso. Entretanto, há muitas mãos humanas por trás disso. Um exemplo está no uso das memórias de tradução, que podem ser um banco de dados pessoal ou coletivo, ou seja, posso adquirir essas memórias de empresas especializadas. No momento da execução do trabalho, são ativadas as memórias e o programa oferece automaticamente sugestões de tradução, a serem aprovadas pelo tradutor à medida que o trabalho vai adiante. Nesse ritmo, a precisão das memórias tende a ser tão fina que alguém poderia pensar que a profissão de tradutor pode ser uma profissão a risco. É um medo insustentado.
Isso poderia ocorrer se as línguas sofressem um processo de retrocesso lexical ou de desaparecimento (risco real para algumas minorias linguísticas). Contudo, o que percebemos, em geral, é um aumento da interrelação entre as culturas e o surgimento de novas realidades, assim como de tecnologias, a exigirem novos conceitos para descreverem as novidades e respectivas traduções. E esse não é o único argumento para sustentar a vitalidade da profissão dos tradutores. Apesar de os algoritmos serem muito avançados e capazes de identificar polissemias, isolando o termo mais adequado para cada caso, há momentos em que o sistema digital não supera a memória articulada do ser humano. É que a memória humana é táctil, olfativa, sonora, visual e histórica ao mesmo tempo. Encontramos um determinado termo e ele evoca não apenas a sua tradução, mas as sensações ligadas a um determinado período ou emoções deslocadas no tempo que podem sugerir interessantes soluções tradutológicas. O ser humano, por não estar compartimentado em seções e setores separados, pode fazer relações não apenas adequadas, mas às vezes surpreendentes, inusitadas ou novas. A capacidade de oferecer respostas irá depender não apenas do domínio da técnica, mas da bagagem cultural de cada profissional e do conhecimento sedimentado, digerido, pronto à memória e ao uso no momento da necessidade.
De certo modo, ser tradutor é ser um eterno aprendiz. Quanto mais traduzimos, mais descobrimos, quanto mais descobrimos, mais memorizamos, quanto mais memorizamos, mais traduzimos bem. Isso também é muito estimulante e, às vezes, arriscado: nunca é possível alcançar o ideal. E, por fim, a tradução exige humildade, o reconhecimento dos nossos limites, mas não a nossa resignação. Não acredito que uma máquina seja capaz de fazer reflexões tão articuladas. Reflexões e emoções juntas implicam um pensamento analógico, exigem operações não padronizadas em base binária. Resumindo: é uma arte. Talvez seja uma arte menor, mas na nossa subalternidade não deixa de ser maravilhosa.

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