Recentemente comentei que adoro comédias, mas raramente gosto de comédias. É que a comédia precisa ter duplo sentido e a risada acontece quando percebemos a duplicidade. A comédia - e nisso sou muito aristotélica - precisa causar um rebaixamento. Portanto, não acho graça em rir da desgraça alheia. Acho plausível fazer comédia com figuras públicas e com detentores do poder. É aí que funciona o rebaixamento. Personalidades públicas se divertem com as comédias inspiradas em sua trajetória - quando são inteligentes e têm senso de auto-ironia.
Mas o gênero de que mais gosto precisa ter ainda um outro nível de interpretação, envolvendo a própria subjetividade do leitor.
Levei alguns dias para publicar este texto porque estava pensando no que me faz rir como leitora. Depois de garimpar a memória e as emoções prazenteiras, lembrei de um dos contos mais divertidos de Moacyr Scliar: A Orelha de Van Gogh. O texto conta a história de um homem mediano, com medianos problemas, que no cotidiano do brasileiro beirariam o trágico, se não dessem ocasião para o uso do jeitinho. Faço uma observação: quem usa o jeitinho não é um desgraçado absoluto, porque tem astúcia e inteligência. Portanto, a personagem mediana que Moacyr Scliar apresenta é o nosso retrato, é o brasileiro médio e mediano, capaz de encontrar solução para os seus problemas e até de rir de si mesmo.
No conto, a personagem está tentando resolver o problema de uma dívida e resolve apelar para o ponto fraco do seu credor: o amor pela obra de Van Gogh. Com a ajuda de um amigo do necrotério, obtém uma orelha, colocada em um vidro com formol, e tenta convencer o credor de que se trata da orelha de Van Gogh, aquela que não aparece no famoso auto-retrato. O credor fica furioso com a tentativa de engano para obter o perdão da dívida. O conto se encerra quando a personagem, desolada, ao lado do filho de 12 anos, interroga-se sobre o ponto em que o plano teria falhado. Olha para o garoto e pergunta (questionando a si mesmo): mas a orelha era a direita ou a esquerda?
Nessa pergunta está todo o jogo do engano e o espelhamento da arte. Para saber se a orelha é a esquerda ou a direita, é preciso saber se Van Gogh pintou diante de um espelho ou não. É a pergunta que leva o narrador a dizer que com esse questionamento perdeu a sua inocência e que faz o leitor sorrir, pois em algum momento da vida, todo mundo passa pela experiência da perda da inocência.
A risada pressupõe um passo a mais: a identificação com o garoto, que perde a inocência e que entra no jogo do engano. É o reconhecimento do status de sujeito mediano, como a personagem do conto, risível, mas que também se diverte com as suas gafes.
A boa literatura sabe dosar a identificação do leitor, deixando-o nesse limbo entre o distanciamento e a evasão, a identificação total, também chamada de bovarismo. No meio do caminho da nossa leitura, atravessando a selva obscura das experiências de leitores, a risada surge entre a ficção e a identificação com a nossa comédia pessoal.
O texto não pode fazer tudo e prever tudo, mas pode deixar a pista. Quando o leitor aceita o desafio e o ridículo, o gancho de um bom texto é um elemento fundamental para uma boa risada transformadora. Quando o texto permite a risada literária sobreposta ao rir da nossa própria experiência de vida, estamos diante de um texto transformador. E estamos diante de leitores que se disponibilizam à transformação. Nenhum texto faz milagre: o leitor deve abrir-se ao riso. Ao riso completo: à risada estética e à risada que toca a sua experiência, que incorpora a figura do leitor ao significado subjetivo da matéria literária. Que é subjetivo, mas não deixa de ser um atributo essencial da obra.
Deixo aqui um link sobre o insolúvel caso. Saímos da comédia e entramos na investigação histórica: o que pode ser assunto para outra reflexão. Onde acaba a história e onde começa a ficção?
"Van Gogh cortou a orelha quando descobriu que o irmão se ia casar"
https://www.publico.pt/2016/10/31/culturaipsilon/noticia/van-gogh-cortou-a-orelha-quando-descobriu-que-o-irmao-ia-casar-1749488
Mas o gênero de que mais gosto precisa ter ainda um outro nível de interpretação, envolvendo a própria subjetividade do leitor.
Levei alguns dias para publicar este texto porque estava pensando no que me faz rir como leitora. Depois de garimpar a memória e as emoções prazenteiras, lembrei de um dos contos mais divertidos de Moacyr Scliar: A Orelha de Van Gogh. O texto conta a história de um homem mediano, com medianos problemas, que no cotidiano do brasileiro beirariam o trágico, se não dessem ocasião para o uso do jeitinho. Faço uma observação: quem usa o jeitinho não é um desgraçado absoluto, porque tem astúcia e inteligência. Portanto, a personagem mediana que Moacyr Scliar apresenta é o nosso retrato, é o brasileiro médio e mediano, capaz de encontrar solução para os seus problemas e até de rir de si mesmo.
No conto, a personagem está tentando resolver o problema de uma dívida e resolve apelar para o ponto fraco do seu credor: o amor pela obra de Van Gogh. Com a ajuda de um amigo do necrotério, obtém uma orelha, colocada em um vidro com formol, e tenta convencer o credor de que se trata da orelha de Van Gogh, aquela que não aparece no famoso auto-retrato. O credor fica furioso com a tentativa de engano para obter o perdão da dívida. O conto se encerra quando a personagem, desolada, ao lado do filho de 12 anos, interroga-se sobre o ponto em que o plano teria falhado. Olha para o garoto e pergunta (questionando a si mesmo): mas a orelha era a direita ou a esquerda?
Nessa pergunta está todo o jogo do engano e o espelhamento da arte. Para saber se a orelha é a esquerda ou a direita, é preciso saber se Van Gogh pintou diante de um espelho ou não. É a pergunta que leva o narrador a dizer que com esse questionamento perdeu a sua inocência e que faz o leitor sorrir, pois em algum momento da vida, todo mundo passa pela experiência da perda da inocência.
A risada pressupõe um passo a mais: a identificação com o garoto, que perde a inocência e que entra no jogo do engano. É o reconhecimento do status de sujeito mediano, como a personagem do conto, risível, mas que também se diverte com as suas gafes.
A boa literatura sabe dosar a identificação do leitor, deixando-o nesse limbo entre o distanciamento e a evasão, a identificação total, também chamada de bovarismo. No meio do caminho da nossa leitura, atravessando a selva obscura das experiências de leitores, a risada surge entre a ficção e a identificação com a nossa comédia pessoal.
O texto não pode fazer tudo e prever tudo, mas pode deixar a pista. Quando o leitor aceita o desafio e o ridículo, o gancho de um bom texto é um elemento fundamental para uma boa risada transformadora. Quando o texto permite a risada literária sobreposta ao rir da nossa própria experiência de vida, estamos diante de um texto transformador. E estamos diante de leitores que se disponibilizam à transformação. Nenhum texto faz milagre: o leitor deve abrir-se ao riso. Ao riso completo: à risada estética e à risada que toca a sua experiência, que incorpora a figura do leitor ao significado subjetivo da matéria literária. Que é subjetivo, mas não deixa de ser um atributo essencial da obra.
Deixo aqui um link sobre o insolúvel caso. Saímos da comédia e entramos na investigação histórica: o que pode ser assunto para outra reflexão. Onde acaba a história e onde começa a ficção?
"Van Gogh cortou a orelha quando descobriu que o irmão se ia casar"
https://www.publico.pt/2016/10/31/culturaipsilon/noticia/van-gogh-cortou-a-orelha-quando-descobriu-que-o-irmao-ia-casar-1749488
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