Este é um artigo sobre a língua portuguesa. Não. É um artigo sobre a história. Não. É um artigo sobre a psicologia. Não. É um artigo sobre a política. Não. Este é um artigo sobre ser humano.
Manchete: “Homem é morto com doze facadas”. Não, não era um homem, era Moa do Katendê, mestre de capoeira, referência cultural para artistas do nível de Caetano Veloso e Gilberto Gil.
Este artigo é sobre a língua portuguesa: eu sempre explico aos meus alunos a função das palavras indefinidas. Elas servem para ocultar e retirar responsabilidades. Se eu digo: “todos devem avaliar com cuidado esse crime abominável”, ninguém vai assumir a responsabilidade de fazer isso. Para usar uma palavra indefinida mais comprometedora, devo dizer, no mínimo: “cada leitor deve avaliar com cuidado esse crime abominável”. Cada leitor, ou seja, você, leitor, que ainda não abandonou este artigo. Mas espere: este não é um artigo sobre a língua portuguesa. É um artigo sobre a história.
Em 1942, uma empresa na Alemanha apresentava os motivos técnicos para a adoção da solução final: “Nos vastos campos de concentração, criados por motivos bélicos no leste do Reich, nos territórios ocupados, a mortalidade é altíssima e a sepultura na terra da enorme quantidade de cadáveres não é mais possível: em primeiro lugar, por falta de espaço e de carência de pessoal; em segundo lugar, devido ao perigo de infecções nos arredores. Portanto, é indispensável eliminar as massas de cadáveres de modo rápido, seguro, higiênico, pelo menor custo, por meio da cremação”. Mas tenha um pouquinho mais de paciência, pois este não é um artigo sobre a história, é sobre a psicologia.
Em “Vida e Morte do Terceiro Reich”, Peter Fritzsche afirma: “Os estudiosos concluíram que alguns grupos sociais de importância fundamental, como os operários e os agricultores, e até mesmo uma parte das classes médias, mostraram pouco entusiasmo pelo novo regime. Mesmo reconhecendo a popularidade de Hitler, afirmaram que o partido nacionalsocialista, assim como as suas políticas sociais e econômicas eram desprovidas de legitimações de base. Segundo essa visão, os nazistas poderiam ser associados a predadores, e a maioria dos alemães teria sido oportunista no sentido político e fraca do ponto de vista moral, mas tendencialmente não teria sido ideologicamente cúmplice”. Os alemães simplesmente se preocupavam em obter as vantagens possíveis e salvar a própria existência. Eram os líderes que perseguiam os objetivos bélicos da guerra e da conquista. O problema é que outras pesquisas chegaram a conclusões opostas, ou seja, a maioria dos alemães compartilhava com os líderes nazistas as ideias antissemitas em termos de exterminío e o nazismo não era nada mais que a coragem de colocar em prática ideias preconcebidas. Peço paciência, porque este artigo não é sobre a psicologia, sobre as fraquezas humanas e sobre as cumplicidades. Na verdade, é sobre política.
Não foi um homem que morreu com doze facadas pelas costas ontem. A vítima de um assassinato que pesa sobre a nossa consciência política, que foi cometido com motivações políticas e fomentado pela política do ódio, essa vítima não é um homem. É mestre Moa do Katendê, referência cultural para artistas do nível de Caetano Veloso e Gilberto Gil. A repetição é proposital. Porque este artigo é sobre a língua portuguesa. A repetição, neste caso, serve para enfatizar que cada morte tem um nome, que vítimas não são números, estatísticas e nem palavras indefinidas. Desumanizar as vítimas é uma forma que o discurso político e ideologizado encontra para esterilizar a nossa sensibilidade. Para nos acostumar, como ocorreu na Alemanha nazista, a vivermos a nossa vida cotidiana em busca das nossas pequenas vantagens pessoais, com uma boa dose de conivência com os horrores do antissemitismo, porque o sentimento de intolerância refletia ideias preconcebidas. Uma das formas mais terríveis de desumanização adotadas pelo nazismo foi a de substituir o nome das pessoas por números, tatuando sobre o corpo o código que reflete toda a atrocidade que esse sistema representa.
Este artigo é sobre a língua portuguesa, porque ideias preconcebidas são a bagagem que trazemos ao mundo para serem vasculhadas, reorganizadas e descartadas quando não servem. Ninguém viaja com a mala fechada. Tiramos fora as nossas ideias preconcebidas, como tiramos fora a camiseta. E com ela caminhamos, suamos, e, quem sabe, jogamos fora quando não nos serve mais. Quem não abre a mala é porque não viaja. E quem não viaja é porque não viveu. Morreu com suas ideias preconcebidas, cristalizadas, como uma perfeita múmia, sem saber se a camiseta valia a pena ou não ter sido usada, desgastada e lembrada no futuro. A tarefa do professor não é fazer a bagagem de ninguém: é convidar para fazer a viagem. É dar a passagem. O percurso é do viajante. Mas este artigo não é sobre isso: é sobre ser humano.
A pergunta é: como podemos ser humanos se não estamos dispostos a avaliar a nossa comunicação, o modo como ouvimos os outros, se não reconhecemos os nossos sentimentos e as nossas motivações, se não conhecemos a história, se não percebemos a dimensão política dos fatos que ocorrem no nosso mundo, se não estamos dispostos a ter relação com ninguém?
Podemos ser refratários a tudo o que acontece no nosso presente e que terá repercussão no futuro. Nesse caso, podemos transformar a nossa bagagem em um simples fardo, com o seu peso amorfo, sem empatia, sem indignação, sem calor, sem reação. Podemos ser iguais a nós mesmos ao longo de todo o percurso, sem jamais questionar os nossos erros e as nossas decisões. Podemos ser os donos da verdade. Podemos estar mortos para a relação com os nossos semelhantes e nem ter percebido que não somos vítimas de doze facadas pelas costas. Somos vítimas da nossa própria indiferença. Somos o nosso próprio suicídio simbólico. Quando as nossas próprias palavras – ou a falta delas – nos aniquilam, não estamos cometendo um crime, mas estamos indo muito além de uma aula de português. Estamos matando o que de mais precioso existe para que sejamos humanos: ter a capacidade de estar em relação.
P.S.: este artigo foi escrito originalmente para o Jornal Correio Riograndense. Infelizmente, o portal online do jornal está fora do ar desde o dia 7 de outubro de 2018. Devido à gravidade do momento que estamos vivendo e à pertinência do tema, decidi publicá-lo no blog. Voltarei a escrever os artigos semanais para o jornal assim que o problema for resolvido.
Manchete: “Homem é morto com doze facadas”. Não, não era um homem, era Moa do Katendê, mestre de capoeira, referência cultural para artistas do nível de Caetano Veloso e Gilberto Gil.
Este artigo é sobre a língua portuguesa: eu sempre explico aos meus alunos a função das palavras indefinidas. Elas servem para ocultar e retirar responsabilidades. Se eu digo: “todos devem avaliar com cuidado esse crime abominável”, ninguém vai assumir a responsabilidade de fazer isso. Para usar uma palavra indefinida mais comprometedora, devo dizer, no mínimo: “cada leitor deve avaliar com cuidado esse crime abominável”. Cada leitor, ou seja, você, leitor, que ainda não abandonou este artigo. Mas espere: este não é um artigo sobre a língua portuguesa. É um artigo sobre a história.
Em 1942, uma empresa na Alemanha apresentava os motivos técnicos para a adoção da solução final: “Nos vastos campos de concentração, criados por motivos bélicos no leste do Reich, nos territórios ocupados, a mortalidade é altíssima e a sepultura na terra da enorme quantidade de cadáveres não é mais possível: em primeiro lugar, por falta de espaço e de carência de pessoal; em segundo lugar, devido ao perigo de infecções nos arredores. Portanto, é indispensável eliminar as massas de cadáveres de modo rápido, seguro, higiênico, pelo menor custo, por meio da cremação”. Mas tenha um pouquinho mais de paciência, pois este não é um artigo sobre a história, é sobre a psicologia.
Em “Vida e Morte do Terceiro Reich”, Peter Fritzsche afirma: “Os estudiosos concluíram que alguns grupos sociais de importância fundamental, como os operários e os agricultores, e até mesmo uma parte das classes médias, mostraram pouco entusiasmo pelo novo regime. Mesmo reconhecendo a popularidade de Hitler, afirmaram que o partido nacionalsocialista, assim como as suas políticas sociais e econômicas eram desprovidas de legitimações de base. Segundo essa visão, os nazistas poderiam ser associados a predadores, e a maioria dos alemães teria sido oportunista no sentido político e fraca do ponto de vista moral, mas tendencialmente não teria sido ideologicamente cúmplice”. Os alemães simplesmente se preocupavam em obter as vantagens possíveis e salvar a própria existência. Eram os líderes que perseguiam os objetivos bélicos da guerra e da conquista. O problema é que outras pesquisas chegaram a conclusões opostas, ou seja, a maioria dos alemães compartilhava com os líderes nazistas as ideias antissemitas em termos de exterminío e o nazismo não era nada mais que a coragem de colocar em prática ideias preconcebidas. Peço paciência, porque este artigo não é sobre a psicologia, sobre as fraquezas humanas e sobre as cumplicidades. Na verdade, é sobre política.
Não foi um homem que morreu com doze facadas pelas costas ontem. A vítima de um assassinato que pesa sobre a nossa consciência política, que foi cometido com motivações políticas e fomentado pela política do ódio, essa vítima não é um homem. É mestre Moa do Katendê, referência cultural para artistas do nível de Caetano Veloso e Gilberto Gil. A repetição é proposital. Porque este artigo é sobre a língua portuguesa. A repetição, neste caso, serve para enfatizar que cada morte tem um nome, que vítimas não são números, estatísticas e nem palavras indefinidas. Desumanizar as vítimas é uma forma que o discurso político e ideologizado encontra para esterilizar a nossa sensibilidade. Para nos acostumar, como ocorreu na Alemanha nazista, a vivermos a nossa vida cotidiana em busca das nossas pequenas vantagens pessoais, com uma boa dose de conivência com os horrores do antissemitismo, porque o sentimento de intolerância refletia ideias preconcebidas. Uma das formas mais terríveis de desumanização adotadas pelo nazismo foi a de substituir o nome das pessoas por números, tatuando sobre o corpo o código que reflete toda a atrocidade que esse sistema representa.
Este artigo é sobre a língua portuguesa, porque ideias preconcebidas são a bagagem que trazemos ao mundo para serem vasculhadas, reorganizadas e descartadas quando não servem. Ninguém viaja com a mala fechada. Tiramos fora as nossas ideias preconcebidas, como tiramos fora a camiseta. E com ela caminhamos, suamos, e, quem sabe, jogamos fora quando não nos serve mais. Quem não abre a mala é porque não viaja. E quem não viaja é porque não viveu. Morreu com suas ideias preconcebidas, cristalizadas, como uma perfeita múmia, sem saber se a camiseta valia a pena ou não ter sido usada, desgastada e lembrada no futuro. A tarefa do professor não é fazer a bagagem de ninguém: é convidar para fazer a viagem. É dar a passagem. O percurso é do viajante. Mas este artigo não é sobre isso: é sobre ser humano.
A pergunta é: como podemos ser humanos se não estamos dispostos a avaliar a nossa comunicação, o modo como ouvimos os outros, se não reconhecemos os nossos sentimentos e as nossas motivações, se não conhecemos a história, se não percebemos a dimensão política dos fatos que ocorrem no nosso mundo, se não estamos dispostos a ter relação com ninguém?
Podemos ser refratários a tudo o que acontece no nosso presente e que terá repercussão no futuro. Nesse caso, podemos transformar a nossa bagagem em um simples fardo, com o seu peso amorfo, sem empatia, sem indignação, sem calor, sem reação. Podemos ser iguais a nós mesmos ao longo de todo o percurso, sem jamais questionar os nossos erros e as nossas decisões. Podemos ser os donos da verdade. Podemos estar mortos para a relação com os nossos semelhantes e nem ter percebido que não somos vítimas de doze facadas pelas costas. Somos vítimas da nossa própria indiferença. Somos o nosso próprio suicídio simbólico. Quando as nossas próprias palavras – ou a falta delas – nos aniquilam, não estamos cometendo um crime, mas estamos indo muito além de uma aula de português. Estamos matando o que de mais precioso existe para que sejamos humanos: ter a capacidade de estar em relação.
P.S.: este artigo foi escrito originalmente para o Jornal Correio Riograndense. Infelizmente, o portal online do jornal está fora do ar desde o dia 7 de outubro de 2018. Devido à gravidade do momento que estamos vivendo e à pertinência do tema, decidi publicá-lo no blog. Voltarei a escrever os artigos semanais para o jornal assim que o problema for resolvido.
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