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O ANEL E O PADRE

Não acredito que se possa falar sobre fake news sem ler Antônio Vieira. Se eu fosse a soberana absoluta no reino das avaliações escolares, o Sermão da Sexagésima seria o ponto de partida para discorrer sobre o assunto.

O que Antônio Vieira nos diz de tão interessante para valer um salto no passado, a fim de compreender o futuro que nos espera? Vieira nos dá uma lição sobre todos os aspectos fundamentais para a conversão. Explica e explicita esses aspectos por meio de uma estrutura lógica impecável. Guia o leitor na compreensão do que afirma, utilizando os próprios aspectos que apresenta.
Vieira nos ensina que palavras não são o bastante. “Para falar ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias obras”, afirma. Muita gente, inclusive quem já possui diploma, anda precisando reler o Padre Vieira, penso comigo. Reler para se defender, reler para compreender, reler para reconhecer onde há somente palavras e onde ficaram as obras, reler para separar o que tem fundamento e o que é propaganda.  Se eu fosse a soberana suprema do império das provas escolares, o tema para a dissertação seria a obra de Padre Vieira. Como é possível que tenhamos sido tão distraídos, esquecendo centenas de páginas indispensáveis para os adultos futuros? Como poderemos ficar velhos sem conservar na memória essas passagens que estruturaram o nosso modo de pensar em língua portuguesa? Estamos dispostos a nos render ao marketing, à frase-feita, ao lugar-comum, ao pensamento banal, até esquecermos de nós mesmos, da nossa capacidade de pensar, refletir e criar?
Pensei no Vieira porque ontem estava cumprindo o meu dever de boa cidadã. Descia com a bolsa, o cachorro, o saco com a sua comida, a sacola com o meu almoço, o guarda-chuva e o saco do lixo – devidamente separado – quando perdi o meu anel. Juro, eu tenho apenas dois braços, com cinco dedos em cada mão, mas carregava isso tudo. Com salto alto, maquiagem e cabelo feito. Quando tentei me livrar do saco de lixo, em um segundo, o tempo de criar um efeito de aceleração para acertar o lixo dentro do latão, senti a alça do saco voando e arrastando o anel da minha mão. Em seguida, ouvi o tilintar do metal contra a lata, o saco caindo sobre outros sacos e o anel sumindo no meio a imundície. De nada adiantou a boa vontade do dono do armazém da minha rua, era muito lixo acumulado e um anel muito pequeno no meio de tudo para ser encontrado.
Pensei no trabalhão que passo todos os dias para ser profissional, mãe, dona-de-casa, esposa, e ainda tentar ter uma vida social. Pensei nas empregadas domésticas brasileiras que adquiram direitos trabalhistas há poucos anos. Obra. Muita gente não gostou, eu sei. Mas como posso compreender as razões de quem despreza os direitos fundamentais de um outro ser humano só para não parecer uma árvore de natal como eu quando desço para ir ao trabalho? Será que esse egoísmo todo esconde o medo de perder algum anel?
Pensei em programas sociais que existem para acelerar a inclusão social e reduzir a marginalidade. Obra. Mas muita gente não gostou disso também. Além das diferenças de berço, muitas pessoas pensam que há seres humanos de primeira e de segunda classe e que essa ordem é imutável: nada deve ser feito para que o filho da empregada possa ter uma oportunidade semelhante à do filho do patrão. Se um dia sair da miséria, terá de fazê-lo como eu, parecendo uma árvore de natal ambulante, de preferência chorando lágrimas de sangue e agradecendo eternamente pelos favores recebidos. Não existe sinhozinho que não encha o seu ego com um bom agradecimento. Mesmo que venha junto com muita humilhação por parte de quem lhe agradece.
Pensei que era inútil tentar recuperar o anel. Ficam os dedos. Foi aí que pensei no Vieira: como é possível que tenhamos esquecido tantas obras e tenhamos ficado com palavras ao vento, mentiras e promessas? Há algo de errado no reino tropical da Dinamarca. Temos que ler Vieira. 

* O artigo foi publicado originalmente no Correio Riograndense, em 6 de novembro de 2018.

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