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ODE MAIS QUE PERFEITA: PRETÉRITOS

Já não se encontram pessoas que usem o pretérito mais-que-perfeito. Que usem simplesmente, como eu gostaria que usassem: claro, perdemos o verbo, mas não o vício de ter caprichos. Não digo que não haja pedantes que utilizem o pretérito mais-que-perfeito simples, mas estes hoje foram suplantados pelos que se orgulham do baixo calão, da vulgaridade e da ignorância. Venceu a maioria. Aos pedantes hoje é reservado o silêncio de cristal e a indiferença de cristaleira, como o brilho de um tempo que amarelou. Na realidade, não é pela falta que me fazem os pedantes que lamento a ausência do nosso pretérito mais-que-perfeito. É que o desejo, a expectativa, a esperança eram mais que perfeitos, além de serem necessários. Pudera eu acabar com essa tristeza. Quem me dera espalhar sorrisos. Prouvera Deus!
A gente pode até viver sem o pretérito mais-que-perfeito com esse uso particular: os italianos, que desconhecem essa opção sentimental, mais do que gramatical, sobrevivem trocando essa linda forma por um "quem sabe", por um "ah, se...", por um imperfeito do subjuntivo. Imperfeito, mas não impossível: quem não tem cão, conjuga com outros pretéritos.

Entretanto, há outras coisas que me fazem sentir a falta desse verbo. É por aquela lógica que coloca os fatos em ordem, minuciosamente, um depois do outro, sem furar a linha do tempo. Como se eu dissesse: houvera tempo em que estudar a História era uma operação essencialmente cronológica. A duras penas, conquistamos a análise, mas erramos com frequência o triplo salto mortal ao nos lançarmos do trampolim interpretativo. Já não nos preocupamos com a sequência, como se fosse uma adição simples e não alterasse o curso dos acontecimentos. Na vida, em que nada é matemático e tudo é muito problemático, a presentificação tem sido uma escolha gramatical aceitável, mas não uma solução. Ora bolas, Cristo primeiro foi traído e somente depois foi crucificado. Não invoquem Santo Agostinho, não proponham um mantra budista: passado, presente e futuro ainda são válidos, enquanto houver memória. E a literatura não representá um perigo enquanto compreendermos que começar pelo meio, ir ao fim e voltar ao começo serve principalmente para entender as causas, o princípio, o passado.
A cronologia é urgente, é necessária em tempos nos quais vivemos uma coisa depois da outra com sofreguidão, com resignação, desistindo de ligar os pontos. Num tempo em que desistimos de nós mesmos, da nossa capacidade de organizar a vida, os fatos, os enganos e as trapaças. Num tempo em que nos distraímos para esquecer, em que a sobreposição de acontecimentos provocam estupefação dos sentidos, em que passar de uma coisa a outra virou droga e ocultar aos sentidos o tempo que passa virou a nossa forma de anestesiar a história.
É por isso que preciso do pretérito mais-que-perfeito: para recordar onde foi que começamos, o que aconteceu depois, para entender onde estamos e para onde vamos.

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