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O QUE A LITERATURA ENSINA SOBRE A REDE

Todo autor constrói personagens e a própria autoria é um elemento constitutivo da ficção. O autor e a pessoa física a que ele se refere não coincidem. Quando falamos de autoria, de personagem autobiográfica e de outras dimensões ficcionais criadas literariamente, não estamos falando da pessoa que juridicamente é responsável pela autoria, mas estamos falando da "persona", da máscara literária que possui pontos de contato com a pessoa real, mas nunca de forma perfeitamente coincidente. O que podemos saber do autor é uma parte da sua personalidade; caso faça literatura autobiográfica, podemos saber um pouco do que transforma em personagem.
Penso nos tantos autores que surpreendem pela timidez, sendo tão articulados nos textos escritos; ou naqueles que prezam a discrição, sendo exuberantes na linguagem. Pensem no Luis Fernando Verissimo ou no João Guimarães Rosa, por exemplo.

O signo não é a coisa, dizem os linguistas. E quando escrevo "máscara" estou apenas indicando algo que as pessoas reconhecem como máscara, mas não é a máscara real. E não é, muito menos, aquilo que a máscara representa.
O que na literatura é um trabalho estilístico, realizado com objetivo artístico, na vida é um fenômeno às vezes intencional, às vezes inconsciente. Nós também representamos um ou vários papéis no cotidiano, por força das convenções, do contexto ou do meio de comunicação que empregamos. Vestir-se para ir ao trabalho ou para ir à praia comunica algo sobre nós: informa a nossa condição profissional e social, mas não fala do nosso sacrifício, da dor ou do entusiasmo que temos em relação ao que fazemos, escolhemos, gostamos. As palavras que escolhemos para comunicar o que pensamos são parte da nossa máscara, não são "nós" no sentido literal.
É importante compreender as complexidades que nos caracterizam, que formam as nossas máscaras, para reconhecermos, antes de tudo, que somos muitos. E para entender que os outros também são muitos na unidade encerrada por um nome e um sobrenome.
Às vezes, na rede social, uma pessoa escreve com letras maiúsculas, como se exibisse músculos fonéticos, e quando discutimos com a pessoa na vida real a sua prepotência se reduz à resignação de um cordeirinho. Bem dizia Fernando Pessoa quando escreveu o "Poema em Linha Reta":

"Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?"

Nas redes sociais somos ou ideal ou, na versão contrária, somos o pior de nós: mostramos os músculos que não temos, a coragem que não cultivamos, expomos os preconceitos que gostaríamos que não fossem percebidos. Somos uma máscara e ao mesmo tempo nos desmascaramos. Por paradoxo, nos encontramos a nos explicar, quando os outros percebem o que nem nós mesmos tínhamos reconhecido.

Hoje, mais do que nunca, é importante ler e compreender as técnicas literárias. A exposição da nossa identidade ficcional que as redes promovem não é um jogo para principiantes. Os que não estiverem preparados podem ser arrastados pela onda. Mas para tudo há remédio. A literatura é um deles. Ler faz bem e ensina. Mas sempre é possível aprender na prática, tropeçando, caindo, machucando-se, levantando, partindo do zero, quando poderíamos evitar arranhões e administrar as nossas relações sociais com mais propriedade e conhecimento da esfera na qual estamos inseridos.

A rede não é a vida. Viver é difícil? Então imaginem viver perigosamente uma vida de ficção. É o que fazemos, querendo ou sem querer, na nossa dimensão virtual, criada pelas redes sociais. Viver é muito perigoso, dizia Guimarães Rosa. Na rede, então, nem se fale. Leiam. Sigam essas três regras básicas: leiam, leiam, leiam.

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