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DOIS VEADOS

Esta semana causou polêmica a afirmação feita por um candidato à presidência de que um certo livro que aborda a sexualidade na infância estava sendo distribuído nas escolas. Houve chuva de desmentidos: um deputado desmentiu, a editora desmentiu, os jornais falaram da mentira. Se tivesse falado de um livro importante, difícil, daqueles que quase ninguém lê, poderia ter passado por beletrista, pedante, retórico, mas não teria causado a avalanche de comentários que provocou. Teria chamado a atenção daquela minoria de leitores atentos, que não é a maioria dos seus eleitores. Com a mentira, mais que deslavada, atraiu a atenção de todos. É uma estratégia eficaz para ser lembrado, embora seja um mal-caratismo sem tamanho.
O fato pode causar sensação por razões políticas, culturais, antropológicas, mas não deveria surpreender. A literatura não serve para nada, mas fornece um acervo de retratos da alma humana e estimula a nossa capacidade de análise. Quem lê criticamente não é pego de surpresa por candidatos que mentem e fazem falsas promessas.

Mario de Andrade, em "Macunaíma, o herói sem nenhum caráter", apresenta um episódio magistral sobre a mentira, que é certamente um aspecto importante na nossa cultura, mas é parte do caráter humano em geral. Esses são os dois pontos fundamentais: Mario de Andrade captura um elemento cultural significativo e um aspecto humano essencial, dando ao leitor a oportunidade de fazer a sua reflexão. Há quem diga que o episódio nasceu de uma discussão que o autor teve com Oswald de Andrade, na qual o autor acabou por desmascarar o amigo; contudo, isso é bastante secundário para o efeito da obra, embora possa ter interesse para a biografia de ambos os envolvidos.
Cito o episódio, que vale a pena saborear em todos os seus detalhes:

"Toda a gente se sarapantou com o sucedido e desconfiaram do herói. Quando Maanape e Jiguê voltaram, os vizinhos foram perguntar pra eles si era verdade que Macunaíma caçara dois catingueiros na feira do Arouche. Os manos ficaram muito inquizilados porque não sabiam mentir e exclamaram irritadíssimos:
— Mas que catingueiros esses! O herói nunca matou viado! - Não tinha nenhum viado na caçada não! Gato miador, pouco caçador, gente! Em vez foram dois ratos chamuscados que Macunaíma pegou e comeu.
Então os vizinhos perceberam que tudo era mentira do herói, tiveram raiva e entraram no quarto dele pra tomar satisfação.
Macunaíma estava tocando numa flautinha feita de canudo de mamão.
Parou o sopro, aparou o bocal da flautinha e se admirou muito sossegado:
— Praquê essa gentama no meu quarto, agora!... Faz mal pra saúde, gente!
Todos perguntaram pra ele:
— O que foi mesmo que você caçou, herói?
— Dois viados mateiros.
Então os criados as cunhas estudantes empregados-públicos, todos esses vizinhos principiaram rindo dele. Macunaíma sempre aparando o bocal da flautinha. A patroa cruzando os braços ralhou assim:
— Mas, meus cuidados, praquê você fala que foram dois viados e em vez foram dois ratos chamuscados!
Macunaíma parou assim os olhos nela e secundou:
— Eu menti."

O Brasil está cheio de caçadores de veados que comem ratos, de pessoas que não sabem mentir, de cunhas, estudantes, empregados públicos e de vizinhos em geral. O Brasil está cheio de tocadores de flauta, uma imagem no episódio que não aparece por acaso, pois flauteador é um contador de mentiras. No repertório literário, também cabe lembrar o flautista de Hamelin, que encanta os ratos, como Macunaíma encanta a vizinhança.

Não é preciso espantar-se. É preciso ler, ler bem e criticamente. Não basta conhecer o resumo do enredo de Macunaíma para apreender o quadro cultural que ele apresenta. É preciso ler o livro do início ao fim. Ler é uma arma importante. Não mata: salva. Salva da retórica, do pedantismo, do beletrismo, da ignorância, da mentira. E também dos maus candidatos. Leiam. Leiam sempre mais. A leitura feita ninguém poderá tirar da cabeça do leitor: nem por decreto, nem por plebiscito. Leiam.

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