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FAZER ACORDO É PRECISO, SIMPLIFICAR NÃO É PRECISO

Talvez nem todos os leitores lembrem, mas eu reconheço: defendi o Acordo Ortográfico de 2008 desde o início.
Então, como é que agora eu ataco de forma tão veemente a proposta de simplificação da ortografia? (Notícia, aliás, desmentida pelo Senador, mas para mim a emenda ficou pior que o soneto, a partir do momento em que ele admite que há uma comissão estudando questões referentes ao Acordo).

Bem, a questão sobre a qual pouca gente fala, mas muito incide na nossa escrita, é a da história da língua. Se a cultura da descoberta da história da língua e da sua ortografia não chegar pelo menos ao ensino médio, os falantes nunca terão oportunidade formal de entender realmente a ortografia da nossa língua.

Vou sintetizar muito, só para dar um gostinho e atiçar a curiosidade (na rede há um monte de informações, desde ensaios acadêmicos até artigos informativos sobre o tema). A história da ortografia da língua portuguesa é dividida em três fases: a da escrita fonética, a da escrita pseudo-etimológica e a fase da simplificação ortográfica e dos acordos.

A ESCRITA FONÉTICA E OS SEUS PROBLEMAS

Quando a língua portuguesa começou a ser registrada na escrita, no século XII, não existiam critérios que regulamentassem a escrita. Estamos falando de um período anterior à invenção do livro impresso (que ocorreria cerca de 300 anos mais tarde) e de uma língua que estava vivendo um processo de florescimento, enquanto o latim entrava lentamente em decadência como língua oficial. Nesse florescer da escrita, a regra adotada na escrita era, na medida do possível, a da reprodução da pronúncia, ou seja, obedecia-se à fonética.
Contudo, a fonética muda de região para região, da sensibilidade de um autor para outro, de um copista para outro, de um amanuense para outro. Portanto, a escrita, durante a fase fonética da história da ortografia, estava cheia de variantes ortográficas.

É importante refletir sobre isso quando pensamos em propostas de reforma ortográfica que se baseiem na fonética. As diferenças de pronúncia e a natural evolução da língua inviabilizam uma ortografia fundada basicamente na fonética. No português, não poderiam ser contempladas por uma unificação da escrita palavras com "d", "t" que são pronunciadas de forma bastante diferente de um lugar para outro e correspondem a fonemas diferentes (isso fica claro quando se faz descrição fonética). Os professores sabem disso: para citar um exemplo pessoal, no Rio Grande do Sul, ainda há cidades do interior onde as pessoas dizem "leite quente" assim como escrevemos, mas há muitas cidades, inclusive a capital do Estado, onde a norma é dizer "leite quente" com o som chiado "ts", bem próxima da pronúncia de "tchê". É bobagem os professores ficarem pronunciando "leite quente" "como se escreve", quando fazem ditado, onde as pessoas não pronunciam como se escreve. Convém usar desde o princípio a pronúncia corrente e explicar para as crianças que este fonema é escrito com a consoante "t". Simples assim.

Se isso acontece com "leite quente", com quantas outras palavras irá acontecer? E quem poderá garantir que não acontecerá no futuro com palavras que hoje parecem imunes a variações de pronúncia? Eu é que não coloco a minha (mya, mia - como se escrevia no passado) mão no fogo pela fonética. Ela é dona do seu próprio nariz... (ou "narix"? - como dizem os cariocas).

A reforma ortográfica baseada na fonética tem a limitação de só poder fazer um retrato da língua no momento presente. Sendo a língua viva em constante evolução, uma reforma desse tipo está constantemente sujeita a correções e não pode nem mesmo dar conta de todas as diversidades existentes no momento atual entre as várias regiões onde o idioma é falado.

A ESCRITA BASEADA NA ETIMOLOGIA E OS SEUS DESAFIOS

A escrita baseada na etimologia não nasce de uma hora para outra, pois o português falado resulta de um longo processo em que o latim pode ser apreciado como vestígio significativo no léxico. Contudo, a chegada do Renascimento e ascensão do Humanismo devolveram à língua latina a sua antiga glória de língua-mãe. A partir daí, o aspecto etimológico adquire novamente um aspecto prevalecente como fundamento para a ortografia do português. E quando a etimologia está errada, acabam por cristalizar-se as falsas etimologias...

A abordagem etimológica não tem apenas o fascínio dos clássicos. A ortografia baseada na etimologia compartilha um patrimônio não indiferente com as línguas neolatinas e com boa parte do léxico em língua inglesa (especialmente o léxico técnico). Isso facilita bastante a comunicação em línguas estrangeiras ou, pelo menos, a compreensão em outras línguas, o seu uso passivo.

Para nós, falantes de português, o desafio da abordagem etimológica, que para mim continua a ser a orientação mais adequada e eficiente para a escrita do português, está na necessária valorização da história da língua. É preciso contar mais histórias sobre a origem e a evolução das palavras; é importante valorizar o léxico coloquial precioso, que conserva antigos saberes; é necessário trabalhar mais o aspecto semântico, as famílias de palavras.

A FASE DOS ACORDOS

A fase da influência etimológica "termina" no início do século XX. A partir da proclamação da República em Portugal, o Brasil e a nação portuguesa realizam vários acordos, a fim de uniformizar a língua escrita - repito: a língua escrita - entre os dois países. Trata-se de um processo que continuaria até o último acordo ortográfico e que, com o tempo, envolveu também os demais países de língua portuguesa, embora nem todos já tenham adotado o último acordo, aprovado no Brasil em 2008.

Os vários acordos realizados, e nem sempre implementados, procuraram simplificar a ortografia sem sacrificar a etimologia. Apesar das controvérsias, também o último Acordo Ortográfico procurou respeitar isso (mas nem sempre obteve o consenso desejado, consideradas as enormes polêmicas).

Os acordos são importantes para a política de difusão da língua portuguesa, pois uma ortografia unificada significa maior facilidade para quem lê, ou seja, economia linguística, mas também economia no sentido monetário. Significa economizar, quando possível, a duplicação de traduções (o que nem sempre pode ser concretizado devido à diferença lexical de um país para outro) e poder criar estratégias comunicativas comuns entre os países de língua portuguesa, aumentando também o intercâmbio de informações entre os países que compartilham a mesma língua.

Contudo, é importante que os acordos limitem-se à simplificação de elementos acessórios, como os acentos usados para caracterizar uma pronúncia (fato já adotado pelo acordo de 2008) e a redução dos hífens (que obedecem, contudo, à sensibilidade dos falantes e caem quando o sentido de junção entre dois elementos diferentes não subsiste). Outras profundas modificações, salvo equívoco meu, podem se tornar um tiro pela culatra e causar um dano maior que o suposto auxílio. Pior: podem, como já assinalei no artigo anterior, arrastar uma língua viva para o caminho das línguas artificiais, com todos os riscos que isso comporta.

ENTÃO?

O recado está dado. Mas ainda tenho um conselho: os falantes devem apropriar-se da língua que usam. Devem interrogar sobre os usos que fazem, sobre as palavras que usam até mesmo sem pensar (e que às vezes revelam lindas surpresas). Falantes conscientes são a maior garantia de que a língua não poderá ser manejada por decreto e à revelia dos pareceres de especialistas e de seus falantes.

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