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CRENÇAS E DESCRENÇAS

A educação está cheia de histórias de descrenças.

Há quem não acredite que o ensino possa ganhar da ignorância. No fundo, acredita mais na ignorância que o aluno traz do que no conhecimento que transmite. E o ensino falha. Quando a gente acredita mais na ignorância, ela toma conta do campinho, assola as estatísticas e reforça a ideia de que ensinar é difícil e aprender é complicado. Todo mundo sai perdendo, mas há quem acredite que isso reforce uma certa aura profissional.

Há quem não acredite que os alunos sejam capazes de usar estruturas complexas da língua. São pessoas que ouvem pelas ruas frases como "se Deus quiser" ou "se eu pudesse, minha filha" e acham que esses exemplos de subordinação na boca do povo são mero fruto do acaso. Não acreditam que sejam exemplos de interiorização das estruturas da língua nativa. Os descrentes gastam um enorme tempo tentando explicar as difíceis orações subordinadas aos seus subordinados alunos para demonstrarem a tese das dificuldades das coisas usadas na vida e justificarem a sua frustração.

Há quem diga que acredita na força da transpiração sobre a inspiração, mas na prática faz exatamente o contrário. Espera que o gosto pela leitura surja à força de sermão e rotula a necessidade de repetição como incapacidade.

Nisso tudo, há uma série de crenças escondidas, sabotando o trabalho que o professor diz amar tanto. Crenças negadas, crenças ignoradas.

E quanto às crenças admitidas?

Eu não sei das crenças dos outros, mas eu tenho várias: eu acredito na fome, acredito no tédio, acredito na tv, acredito na diversidade, acredito na dor de barriga, acredito no olhar e acredito nos sonhos.

Acredito na fome, porque aluno com fome não tem condições físicas e estímulo para aprender.

Acredito no tédio, porque quando a aula é chata o nosso pensamento cria defesas e manda a cabeça para as nuvens (mas às vezes, lá nas nuvens, surgem ideias mais originais que na aula).

Acredito na tv, essa indústria monstruosa, o pior inimigo dos professores. A escola só poderá competir com a qualidade técnica que a tv esbanja (mas não necessariamente no essencial) quando tiver uma organização reforçada e uma equipe bem afinada. Isso implica investimentos e uma visão estratégica que depende da instituição. Não adianta querer colocar toda a culpa do fracasso nos professores... não cola. Qualquer treinador de várzea sabe disso.

Acredito na diversidade: aluno normal e na média não existe. Se eu quiser ter alunos normais, vou perder de vista tudo aquilo que é pessoal e único: talento e originalidade, por exemplo.

Acredito na dor de barriga, pois o intestino é o nosso segundo cérebro, processando as nossas emoções. Dor de barriga é sinal de alarme para o professor começar a falar mais dos aspectos afetivos da linguagem, quebrar o gelo e abordar temas que amedrontam.

Acredito no olhar: nunca o olhar de um aluno meu brilhou antes de uma descoberta. Se o olho estiver brilhando sem motivo aparente, pode ser amor ou o início de uma tragédia, podem acreditar.

Acredito nos sonhos. Eu sempre quero saber o que as pessoas sonham, o que elas desejam. Quando compartilham comigo o que esperam realizar, o meu trabalho já está quase pronto. As pessoas adoram correr com as suas pernas e voar livres na direção da realização dos sonhos, é só o professor dar um empurrãozinho. E elas vão ficar muito agradecidas pela confiança.

É muito bom acreditar.


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