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"PLAIN LANGUAGE", PARA QUE TE QUERO

Você, leitor, que acha a ortografia do português complicada
Você, leitor, que no momento da dúvida, desejou intimamente uma ortografia simples, sem exceções
Você, leitor, que nunca nessa vida dura teve oportunidade de descobrir etimologicamente a sua língua
Você, leitor, que foi desprezado pelos pedantes e humilhado pelos doutos
Você, leitor sensato, que até concorda que não haveria mal em unificar fonética e escrita onde não há controvérsia
Você, leitor, que assiste aflito às discussões sobre os acordos da língua e aguarda aflito pelo dia em que terá de escrever com outras regras de novo
Você, leitor sofrido, estará perguntando: - "Plain Language"? Era só o que me faltava.

Pois é. Eu também não pensava na "Plain Language" há tempos. Foi essa barbaridade de proposta chamada "Simplificando a Ortografia" que me fez lembrar dela. Sim, porque há modos e modos de simplificar a vida da gente.

Cito dois parágrafos do texto do projeto "Simplificando a Ortografia" que considero realmente péssimos:

( http://simplificandoaortografia.com/index.php/simplificando-ortografia-o-que-proposta-e/)

"Hoje ninguém sabe ortografia do português. Hoje as pessoas decoram algumas grafias. É só o que podem fazer, pois não há racionalidade nas regras. Como explicar para um aprendiz que se escrevem extensão e estender; mandachuva e guarda-chuva; harpa e arpão; zoológico, exame e pesado? Como explicar que, para casos na visão dele semelhantes, as soluções de escrita sejam diferentes? Apelando para a justificação etimológica?
Só quem não tem experiência em sala de aula pode defender essa fantasia. Até porque não há etimologia que consiga justificar por que escrevemos extensão com x e estender com s. Quem já desempenhou a função de alfabetizador, como pai ou professor, sabe do que estamos falando.
É preciso ter regras lógicas, com sentido que possa ser alcançado por todos, sem exceções, de modo que ninguém precise mais decorar as grafias quase que palavra a palavra, como é agora."

Aqui vão três razões pelas quais fugir dessa abordagem:

1. Quem defende a racionalidade, a eliminação de exceções, a linearidade total na ortografia de uma língua, não tem a menor noção do que seja uma língua natural. As exceções existem em todos os sistemas que evoluem historicamente e que estão sujeitos a influências de outros idiomas. Isso é ainda mais comum em um mundo globalizado, como o que vivemos hoje, e também foi um processo significativo para a nossa língua durante a Expansão Ultramarina, quando importamos e exportamos uma série de palavras que hoje muita gente não sabe de onde vêm. Exemplos: importamos "leque" e "cetim" aportuguesando nomes de lugares do Oriente e exportamos "cama" para a Índia e "tempura" para o Japão. Qual é o problema? Decorar as grafias? A nossa memória é ativa e tem um potencial muito mais amplo do que supomos. Basta pensar que aprendemos a falar a língua nativa do nada, sem professor, só interagindo com a mamãe, com o papai, com os avós, com os irmãos. Pensem bem: uma criança, quando inicia a sua alfabetização, conhece uma língua sem nunca ter tido um professor de gramática! Milagre? Não. É parte das nossas capacidades intelectuais, assim como a habilidade de memorizar a escrita (que é favorecida pela memória manual, do gesto da escrita ou da digitação, e pela memória visual: ambas facilitam a interiorização da ortografia).

2. Sim, apelando para a justificação etimológica. Aqui entra um dos princípios da "Plain Language", que em português é traduzida como "linguagem objetiva", mas acho uma definição redutora.
A "Plain Language" é um movimento que defende o uso da língua (uso, não modificação!) de forma clara, o mais compreensível possível para o mais amplo número de interlocutores, inclusive estrangeiros. Para isso, o movimento usa como critério o "índice de difusão internacional", ou seja, o número de línguas em que a palavra aparece com a mesma raiz etimológica. Por exemplo, "destino" é um termo que pode ser amplamente compreendido, mesmo pelos que não são falantes de português; ao contrário, "blood", em inglês, não tem um alto índice de difusão internacional, e faz parte daqueles termos menos amigáveis para o falante estrangeiro. A base etimológica comum, compartilhada por muitas línguas, não apenas europeias, em muitos casos, é um fator positivo para a comunicação. Não podemos aprender e ensinar português na perspectiva de uma língua fechada e de uma comunidade isolada. Devemos ensinar abrindo horizontes, mostrando laços em comum com outras culturas, estimulando a curiosidade sobre a história e sobre os princípios etimológicos que subjazem a ortografia. Somente dessa forma, um falante poderá exprimir no seu idioma experiências vividas alhures, poderá trazer para o seu mundo outros mundos. E poderá fazer isso sem cometer as barbaridades ortográficas que às vezes vemos quando um termo estrangeiro entra na nossa língua. É engraçado: temos fama de acolher bem os estrangeiros, mas temos medo de estrangeirismos na língua, como se isso fosse um fator de empobrecimento linguístico. É o contrário: quem não se "contamina", morre fechado no seu purismo.

3. A etimologia não exclui a fonologia. Uma boa abordagem didática da história da língua sabe valorizar as assonâncias compartilhadas por diferentes línguas. Um professor preparado não desanima diante da evolução da língua, mas explora a relação entre a fonética e a grafia. Eu vejo isso todo dia: é muito engraçado quando meu filho ouve espanhol, entende quase tudo, e me pergunta: "mamãe, por que eles falam português estranho?" É preciso acreditar muito pouco no potencial dos alunos para achar que eles não irão conseguir superar as dificuldades da nossa ortografia. Está na hora de encontrar melhores instrumentos de ensino, não acham?

Hoje paro por aqui em relação à "Plain Language" porque o tema é ortografia. Mas fica a dica. Voltarei outro dia ao assunto, porque a "Plain Language" não se resume à escolha lexical, tem propostas de princípios a seguir na construção das frases e na estruturação dos períodos. É uma abordagem interessante.



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