Pular para o conteúdo principal

QUE TEXTO HORRÍVEL!

“Respondeo o emperador de todas estas cousas ǭ me auees dito creo eu firmemente. & digovos em verdade ǭ se o santo profeta jesu christo todo poderoso me quer dar saude no meu corpo segũdo a eu tijnha ǭ eu vingarey a sua morte & lhe cõprirey todo quãto lhe tenho pmetido.” 

Antes de comentar o texto acima, gostaria de dar a fonte do material: 

Leia aqui o artigo sobre o texto citato

No artigo do professor Silvio de Almeida Toledo Neto, reproduzido no blog, há uma boa descrição do texto do qual citei o pequeno trecho acima.

Também gostaria de explicar que para o "e" usado como conjunção aditiva (no texto aparece com um sinal gráfico semelhante a um "7"), optei pela transcrição com o "&" - também chamado "comercial", pois em muitos textos impressos (com fins comerciais, e com uma grande consciência de economia, como veremos adiante) o "&" é utilizado para evidendar a sua função como conjunção. E também esse "&" tem uma história, uma evolução que aparece no link abaixo:

Olhe a evolução do &

Feitas as premissas, algumas constatações:

A língua evolui constantemente. Na perspectiva da evolução, observamos um texto antigo,  valorizamos os seus arcaísmos, podemos colocá-lo na linha do tempo, comparando com textos do passado e com textos do presente.

Salta aos olhos, por exemplo, o uso da abreviação "ǭ" (que). Também em inscrições latinas, esculpidas no mármore encontramos esse tipo de uso. Isso é admitido quando as abreviações possuem um sentido compartilhado por uma comunidade e quando o seu uso é legitimado por essa comunidade.

Isso nos deve fazer refletir em relação ao uso de abreviações no português contemporâneo: aceitamos abreviações como "Ilmo." (Ilustríssimo), mas temos dificuldade para aceitar a abreviação "vc" (você). Poderíamos aceitar "vc" em contextos de escrita informal, que é um dos registros da língua. Assim como podemos observar que o uso de um "ilmo." em um bilhete trocado entre amigos é um uso inadequado, a menos que seja utilizado com ironia ou como brincadeira.

Também é interessante a indicação gráfica de aspectos fonéticos da língua. O til, que sempre indica a nasalização de uma vogal, é empregado em situações que hoje, por convenção gramatical (REPITO: CONVENÇÃO GRAMATICAL), são descritas com o uso da consoante "n" (segũdo) ou "m" (cõprirey). Daí, a gente explica para os alunos, desde os primeiros dias de escola: antes de "p" e "b" coloca-se "m", nos outros casos coloca-se "n"; no final dos nomes a nasalização é indicada com til e no final dos verbos com "m". Na lei (desculpem, na gramática), a língua funciona perfeitamente. E vai explicar para o garoto que um senador e professor brasileiro se chama Cristovam Buarque e não Cristóvão Buarque? Por quê? Porque as leis (até as leis gramaticais) são convenções que uma comunidade aceita e compartilha. O primeiro caso, o das abreviações, também é uma convenção, não é uma lei divina. Podemos dizer que as convenções facilitam a nossa vida, isso sim. Que cada classe de palavra fica no seu lugar, com a sua forma de grafia codificada, se utilizarmos o mesmo princípio. Podemos dizer que os pais do senador Cristovam tinham uma queda pela escrita arcaica. E fim. Não podemos dizer "anátema!" como se todo erro de ortografia fosse uma heresia contra a língua. Não é. E professor que faz isso perde a oportunidade boa de catapultar os alunos no nosso rico passado linguístico.

Terceiro aspecto interessantíssimo dessa história: o princípio da economia.

Se no passado a inclusão de vogais foi uma conquista evolutiva da língua em sua forma escrita, as inscrições antigas em mármore mostram como o espaço era um elemento determinante na escolha de uma linguagem sintética, capaz de dizer muito em lajes muito restritas. Vemos isso visitando catacumbas, vendo túmulos antigos ou admirando as fachadas (as que restaram) em monumentos antigos ou as lajes conservadas em museus (tudo isso pode ser visto dando uma volta pela internet). Vendo esse tipo de material, encontramos palavras unidas (pois o leitor provavelmente saberia fazer a separação mental entre um termo e outro), encontramos muitas siglas (SPQR, por exemplo, em Roma) e palavras abreviadas. Tudo isso em um contexto solene, portanto formal, culto. 

Com a invenção da imprensa, a possibilidade de multiplicar o número de cópias de um livro não provocou abundância no uso do papel. Pelo contrário! Sendo o papel um material caro e utilizado em maior quantidade, justamente porque a imprensa previa a reprodução de um grande número de exemplares, os tipógrafos procuravam colocar o maior número de informações possíveis dentro da página (daí as abreviações que vemos no texto que citei no início deste artigo). Por isso, o material impresso era mais denso de texto em relação aos manuscritos (mas isso é uma generalização, que obviamente encontrará inúmeras exceções devido a situações específicas).

Hoje não é diferente: quando falamos de linguagem objetiva, eficiente, estamos sempre utilizando o princípio da economia. Os leitores de hoje querem textos mais curtos, mais enxutos, têm pressa de devorar conteúdos. A economia da língua não está mais ligada ao espaço da folha de papel, mas ao tempo de leitura.

Fim. Tudo isso só para comentar um trecho em português arcaico que nos captura e faz pensar que a língua é uma beleza que se transforma, que retorna e refaz os seus passos, deixa vestígios e nos dá pistas preciosas para enfrentar os desafios que os falantes nos apresentam todos os dias com o modo único que têm de usar a sua língua.

Comentários

Postagens mais populares

LÁ VAI BARÃO!

E SE A MBOITATÁ FOSSE UMA METÁFORA ATUAL?

HABEMUS MINISTRUM