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ODE À IGNORANÇA

Esta é uma declaração de amor a Alberto Caeiro, o primeiro; e a Manoel de Barros, o último. Porque os amores são assim: restam aqueles que inauguram o curso de um rio e aqueles que Vinicius definiria serem os únicos que ficam.
Faz anos: fui à livraria comprar o então último livro de Barros.
― Queria o “Livro das Ignoranças”.
A vendedora corrigiu-me:
― Não é ignorança, é ig-no-RÂN-CIA.
Claro, ela conhecia muito bem a matéria dos produtos que vendia: não se pode trabalhar em uma livraria e não ter certa cultura.
Digamos, porém, que o meu amor dava-me asas para correr à livraria mais próxima de casa (nem a maior, nem a mais abastecida), chegando antes que a moça pudesse ver os últimos lançamentos e constatar que nada havia de estranho no meu pedido.
A “ignorança” de Manoel de Barros é a ignorância no momento em que ainda ignora si mesma. É ignorância em estado puro. Ela me carrega para Alberto Caeiro, como se eu fosse Dona Flor. É inevitável. Caeiro dizia: “a única inocência é não pensar”. Penso, logo... ignorar é uma espécie de oásis para a caravana das almas curiosas.
Ignorar exige árduo aprendizado, requer sensibilidade para intuir quando estamos diante de algo desconhecido. Cobra-nos humildade.
A palavra faca, por exemplo. Esse termo que dispensa escola e teorias, que nos acompanha diariamente. Esse termo era desconhecido para mim. Só recentemente descobri que a acepção foi incorporada ao português na aurora do nosso esplendor gramatical e tem paternidade muito controversa, do crível latim, passando pelos convincentes inglês e árabe, até as pouco prováveis origens do banto, sudanês ou francês, este por assimilação fonética. Quem ignora precisa buscar respostas: bendita ignorância que desfamiliariza o que parecera até então igual a si mesmo na sua função ordinária!
Mas não falta quem se coloque do outro lado, usando a ignorância alheia como um punhal. Tenho aversão a essas posturas. Confesso publicamente desconhecer o sentido de muitos jargões e sempre irei perder as disputas com meus pares, prontos a pedir à minha memória o preciso conceito e uso de estandarte, padrão e outras palavras ainda mais esdrúxulas. Curvo-me a seu poder, como a costureira curva-se aos pés de uma baronesa. Recolho meus alfinetes e aguardo o dia em que darei o ponto entre as palavras, farei babados e plissês. Escreverei a vida secreta do linguajar vulgar.
Os verdadeiros ignorantes têm essa vantagem: uma vida inteira pela frente. E sempre terão, enquanto a língua for, como de fato é, viva.

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