Quase sempre as demonstrações típicas do pior beletrismo são vazias: descontextualizadas, pedantes, mas com a força de um arpão que fisga a presa no momento de distração.
Sou grata à sinceridade de um tio meu por ter retirado o véu de falsa beleza dessas performances que põem no chão as almas ingênuas. Ele explicava que, para manter a sua autoridade de chefe competente, costumava reforçar a fama de homem de grande memória e vasta cultura, usando as reuniões de setor para as suas encenações.
Depois de levantar os pontos a serem discutidos, elencando erros, equívocos e atos imperdoáveis, ilustrava a questão e recorria a uma citação com fonte completa, inclusive o número da página. A sua tese é que a citação tinha um ótimo efeito, mas lembrar até o número da página era algo para deixar qualquer mortal desmoralizado. Temido por sua memória, mantinha desse modo um firme controle sobre os funcionários da repartição. Tinha ainda o cuidado de não repetir constantemente os mesmos escritores e obras, fazia com frequência alusão a autores estrangeiros e saltava de um século para outro como se virasse uma página qualquer. Dava um trabalho danado: cotidianamente ele precisava selecionar uma frase, decorar e eventualmente anotar em um papelzinho para o caso de emergência. Mas tinha as suas compensações: divertia-se muito com a própria capacidade de inserir no discurso citações que muitas vezes não tinham nada a ver com o tema da conversa. Diante da perplexidade admirada da plateia, explicava-me: a retórica em estado puro!
Infelizmente os vestígios de sua técnica perderam-se. Mas garanto que a história é verdadeira. E que ele galgou todas as posições possíveis na sua carreira. Aposentou-se e, desde então, nunca mais o vi pegar num livro. A sua bengala agora é literal.
Adorei!
ResponderExcluirFaltou definir melhor o que é beletrismo e qual a sua origem.
ResponderExcluirObrigada por sua observação. Vou retornar ao assunto em breve, assim espero poder dar uma resposta mais apropriada.
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