Na universidade eu
tinha um colega que lia dicionário. Não é brincadeira. Hoje é professor
universitário, um profissional sério e competente. Mas é óbvio que esse
resultado profissional não se deve à leitura do dicionário. Para não
descredenciar meu colega, que respeito muito, é preciso explicar até o fim o
seu método: ler dicionário era uma espécie de rito noturno, utilizado para
desafiar a própria memória, para descobrir alguma palavra nova, para refletir
sobre o léxico.
Um velho mito consolidado
entre professores de língua é que o conhecimento de um idioma é diretamente proporcional
ao número de vocábulos utilizado pelos estudantes. Há inclusive pesquisas que
mostram a relação entre o número de palavras utilizadas e a faixa salarial em
que o profissional pode se colocar. Essa é uma grande falácia. Se assim fosse,
os professores de português, os gramáticos e os linguistas receberiam uma
remuneração milionária, e os físicos, com sua conhecida concisão, provavelmente
seriam condenados à pobreza perene.
Todavia, essa crença
continua presente no ensino, e a questão das dúvidas lexicais muitas vezes é
trabalhada de forma estéril. Quando o aluno pergunta o que uma palavra
significa, há muita gente que liquida essa preciosa oportunidade e, em vez de
explorar a bagagem de conhecimentos dos alunos, limita-se a dar a definição ou
a tradução da palavra. E a aula prossegue.
Os meus alunos sabem
que uso muito dicionário em sala de aula. E que esse uso é árduo e que às vezes
empregamos muito tempo nessa tarefa. Isso acontece porque acredito que
explicitar o sentido de uma palavra não é suficiente para que a definição se
aninhe no coração do aluno, para que se transforme em conhecimento (é bom
lembrar que etimologicamente o verbo “decorar” vem da palavra “coração”, quer
dizer, a lembrança está ligada à emoção, não somente a uma função racional).
Então, para desfolhar o sentido de uma palavra, recorro frequentemente à
associação de ideias, a semelhanças ortográficas em outras línguas que possam
ajudar a descobrir o sentido da palavra, e sempre pergunto – antes de dar a
resposta – se alguém do grupo conhece aquela palavra, se é capaz de falar sobre
ela. Em outras palavras: vou buscar na bagagem de cada aluno os elementos que
possam permitir a memorização da nova palavra.
A bagagem pessoal (o “background”)
é fundamental para ler em outra língua. Confiar na própria bagagem e enriquecer
a própria bagagem através de experiências são ações fundamentais para superar o
vazio que por vezes aparece diante de palavras que não entendemos no interior
de um contexto.
Para mostrar isso na
prática, gostaria de propor um pequeno teste. A lista a seguir contém palavras
que, suponho, são conhecidas pela maioria dos falantes nativos e/ou
estrangeiros do português:
quadrados – órbitas
– períodos – planetas
– cubos – eixos – translação – proporcionais – maiores – suas – os – dos – de – aos
– são
Agora proponho um
texto utilizando as palavras acima:
“Os quadrados dos
períodos de translação dos planetas são proporcionais aos cubos dos eixos
maiores de suas órbitas”.
O que é preciso para
entender a frase acima? Certamente não basta conhecer o sentido superficial dos
vocábulos. Tratando-se de uma definição da física, é preciso ter alguma
familiaridade com essa esfera do conhecimento para entender o que está sendo
expresso. Quer dizer, é preciso ter bagagem. (Para os curiosos: essa é a
terceira Lei de Kepler).
Quando estudamos uma
língua, não podemos pensar que conheceremos o básico, o avançado ou o superior
de uma língua. Conheceremos um número maior ou menor de registros, de acordo
com a nossa experiência, o nosso interesse e as nossas necessidades. Precisamos
pensar mais nos registros (nos setores, nas esferas) em que utilizaremos a língua.
Se gostamos de música, é bom aproveitar nossa bagagem nessa área para descobrir
a língua estrangeira. Se trabalhamos na área científica e estudamos português
para trabalhar no Brasil, precisamos conhecer em português as fórmulas, os
registros utilizados naquele setor. Se estamos procurando emprego, precisamos
estar preparados para o tipo de pergunta e o tipo de resposta esperada.
Tudo isso precisa ser
feito com envolvimento emocional, com interesse. “Decoreba”, quer dizer,
memorização à moda papagaio (detalhe: decoreba, termo pejorativo, é uma
simulação do decorar, é uma falsa memorização com o coração), não leva a nenhum
resultado duradouro. Pensem nisso e sigam o seu coração. Ou, como se diz em
italiano, “va’ dove ti porta il cuore”.
Realmente o uso do dicionário no sentido bem expressado neste artigo, nos permete de conhecer, entender e aprofundar uma língua de uma forma mais crítica e madura.
ResponderExcluirObrigada pelo comentário.
ResponderExcluirUma pergunta: em relação às palavras utilizadas para o exemplo, conseguiu entender o texto? Se sim, na sua opinião isso foi resultado de sua bagagem cultural?
Claramente o bagagem cultural é imprescindível. Se você faz um experimento de esta modo pode ver claramente o que isso significa:
ResponderExcluirtoma dois números 5 e 2 e pergunta a 3 pessoas diferentes o que pode significar:
O primeiro um matemático diz: dois numeros primos.
O segundo um estatístico: uma progressão em base 3.
o terceiro um informático: dois elementos de uma variável casual.
tem que ver com o perfil de cada um, seguramente!
Vou recomendar no meu blog. Artigo estimulante e saborosamente didático.
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