Antigamente se
escrevia assim: agora, com o Novo Acordo Ortográfico, continua igual. O uso do
hífen é a pedra no sapato para os professores que tentam explicar as novas
regras ortográficas. Mas antes, também não era? Era, era. Levante a mão quem era
capaz de propor sem pestanejar a correta ortografia de uma palavra nova.
Palavra listada em gramática não vale. Aqui a questão é de princípio, não de
memória.
O Novo Acordo Ortográfico veio
colocar a mão nesse vespeiro. Quais são os critérios que adotamos para utilizar
ou não o hífen em português? A questão permenece aberta. Pronto. O problema não
está resolvido, mas já temos um ponto de partida.
E nas outras línguas, tudo está
certinho, ninguém tem dúvidas? Tem. Em inglês, basta confrontar meia dúzia de
jornais cotidianamente para ver como as expressões compostas aparecem nas mais
variadas formas: compostas com palavras soltas, ligadas por hífen, compondo uma
palavra única por justaposição. O meu caro professor Castorina, que enfrentava essas
questões com surpreendente tranquilidade, dizia nas aulas: as palavras se
agregam formando um novo vocábulo à medida que a expressão é percebida como algo
novo, que não pode ser dissociado. Para ele a questão era resolvida pelo tempo:
primeiro as palavras ficam soltas, depois passam a ser unidas pelo hífen e
finalmente formam uma palavra nova. De fato é assim, se pensamos a língua em
uma perspectiva diacrônica. Em outras palavras, uma mudança profunda não se faz
por decreto. Mas as mudanças ocorrem sempre, independentemente dos decretos!
Ah, não esqueçam: eu defendo o
acordo! Lida a última frase do parágrafo anterior, não parece contraditório? Parece,
mas não é. O que, afinal de contas, esse famigerado Acordo mudou? Eliminou
alguns acentos, eliminou letras mudas (as que são pronunciadas, como fato/facto
permanecem com dupla escrita), eliminou alguns hifens. Não estamos falando de
mudanças profundas, mas de simplificação ortográfica. Quem errava a acentuação
de “ideia” continuará pronunciando a palavra como sempre fez, só que agora a
falta de acento não é mais um erro de ortografia. Só na questão do hífen o
Acordo talvez tenha aberto uma discussão amortecida pelas nossas certezas
dicionarizadas. As novas regras nos obrigam a pensar em como temos utilizado as
palavras compostas, o que elas de fato significam para os falantes e dá novo
vigor para o papel de gramáticos e linguistas, que se veem novamente chamados a
observar e a analisar a língua em seu processo de constante mudança.
Tem uma última questão,
frequentemente levantada pelos detratores do Acordo: o suposto massacre à
etimologia da língua. Também aqui há mais medos do que fatos. Sempre pensando
em termos diacrônicos, sabemos que o português afunda raízes no latim (daí o
verso de Olavo Bilac, que eu adoro: “Última flor do Lácio, inculta e bela!”).
“Inculta e bela”: são dois adjetivos fundamentais para pensar no processo de
evolução da língua. A língua não evolui sem trair suas raízes, não pode
ampliar-se sem abrir mão da fidelidade ao termo-mãe. Isso não significa que
estamos perdendo os laços com a história da língua. As palavras possuem a sua
história independentemente da evolução ortográfica que sofreram. O nosso léxico
está cheio de exemplos. Menciono apenas um, que compartilhei com meus alunos: o
verbo “queixar-se” vem do latim “quassare”. Nós sabemos que “queixar-se” pode
ser sinônimo de “lamentar-se”, embora nem sempre signifique “lamento”. Pois
bem. Em italiano temos, derivado de “quassare”, o verbo “squassare” – golpear
com violência –, mas também “chiasso” – barulho. Em italiano a palavra não assume
o sentido de “queixa” e cria muita curiosidade que o verbo “queixar-se” tenha
essa origem. Eu tento usar a fantasia, já que não tenho nesse momento acesso a
fontes dos arquivos históricos: e se o verbo tivesse assumido essa acepção em
português devido à associação entre fazer barulho, fazer confusão, fazer
zoeira, como dizemos hoje em português, e o fato de fazer uma queixa?
Como se vê, a etimologia é uma
caixinha de surpresas. “Queixar-se” é apenas um exemplo de como a língua
evolui, muda a sua grafia, mas não perde a sua história. Basta mudar de idioma
ou ir à procura das raízes para descobrir coisas insuspeitáveis que os livros e
a cultura preservam. Eu adoro livros e aventuras, mas naturalmente respeito
quem tem pela língua uma devoção que impede qualquer contestação da sua
sacralidade. Respeito, sim, porque aventurar-se é importante, mas os guardiães também
são fundamentais. Eles velam, fechados nas bibliotecas, nos arquivos, nos
centros de pesquisa, pelo patrimônio da língua. São a nossa âncora sólida. Mas
nós, professores, não precisamos ser guardiães. Pelo menos não todos os dias.
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