Deixo a palavra a Sara Piccoli, autora desse belíssimo texto, em que fala da sua experiência com a língua portuguesa.
Sonho é
palavra ônibus.
Sonho
não é apenas o produto do nosso subconsciente quando dormimos, mas
é,
sobretudo, alguma coisa que
almejamos, que desejamos fortemente, mas que não sabemos se vai
virar realidade, daí a expressão: “....seria
um sonho!”.
Em qualquer
acepção quisermos considerar a palavra, sonho indica em todo caso
alguma coisa que somente nos pertence e que ninguém poderá jamais
roubar. Sonho é dimensão onde tudo é possível, mesmo que o objeto
do nosso sonho não seja possível na realidade, porque sonhar
ultrapassa os limites de espaço e de tempo em que vivemos.
Sonho é
alguma coisa que pertence somente à gente, um desejo forte, alguma
coisa que sempre vamos levar conosco no âmago do nosso ser, alguma
coisa que talvez só nós possamos entender direitinho, que sempre
vai nos animar e que sempre vamos visar.
Sempre
sonhei muito e sigo sonhando. Muitos dos meus sonhos viraram
realidade, muitos não. Já sabia disso quando comecei a sonhar com
eles, pois isso faz parte da natureza do próprio sonhar.
O que
descobri depois é que às vezes topamos com situações inesperadas
que nos surpreendem por serem sonhos que nem mesmo sabíamos ter e
reparamos nisso somente quando o sonho já virou realidade. E o que
há melhor do que um sonho que vira realidade?
Nos últimos
anos aconteceu comigo exatamente isso.
Sempre
pensei que uma só língua é aquela que nos guia no nosso cotidiano.
A língua que encheu nossos ouvidos desde o primeiro dia da nossa
vida, a língua em que a mamãe nos fala quando ainda estamos na
barriga, a língua dos carinhos dos pais, das brigas com os irmãos,
das fofocas com os amigos, a língua em que rezamos, contamos e
imprecamos. Isso, a não ser que nasçamos e cresçamos em uma
família onde sempre se falou mais de uma língua; mas também
naquele caso há sempre a língua predileta do nosso sentir, a língua
em que verbalizamos as batidas do nosso coração, a língua em que
sentimos quando trocamos um olhar com a pessoa querida, a língua do
nosso sorriso, do nosso choro, da nossa raiva, da nossa dor.
Certo dia,
uma amiga alemã que mora na Noruega fez-me refletir sobre isso
quando falou que lamentava o fato da língua ‘emocional’ do seu
filhinho não ser o alemão, a língua de casa, mas o norueguês,
quer dizer, a língua do mundo em que ele nasceu e vive.
Daí pensei
que também os que crescem perfeitamente bilíngues têm sempre uma
língua ‘predileta’, mesmo inconscientemente, que é a língua
das entranhas, que pode ser outra da primeira língua que ouvimos e
que nos acompanhou nos primeiros anos de vida, outra da língua
falada em casa, e que instintivamente governa nossos pensamentos e
sentimentos.
Nunca
cheguei a sentir em nenhuma língua que não fosse a minha. Não
pensei sequer possível chegar a isso, pois tive sempre a firme
convicção de que a gente sente em uma só língua.
Enganei-me e
isso foi meu sonho que não sabia ter e que descobri somente quando
virou realidade.
Certamente
foi um sonho descobrir que é possível acolher no coração outra
língua do sentir. Foi diferente.
O português
se tornou, sem que eu me desse conta, língua do meu cotidiano,
língua das minhas exclamações instintivas, a língua em que muitas
vezes conto, a língua em que muitas vezes exprimo minha surpresa, a
língua em que escrevo (e não seria capaz de escrever do mesmo jeito
em italiano), a língua que arrasou, implacável, as outras.
Sem
que eu me desse conta, o português se
juntou ao italiano como língua do meu
sentir e assim que descobri a possibilidade que o meu ser abrigasse
realmente duas línguas, entendi que era meu sonho inexprimível de
menina, quando brincava com as bonecas fingindo falar um idioma que
não conhecia, que se desvelava em toda sua magnificência e riqueza
no ato mesmo de virar realidade.
Isso é o
que é sonho para mim. Por isso sonho é também magia porque de
certa forma dá ‘realidade’ a coisas às vezes irrealizáveis ou
que nunca achamos viáveis. É só fechar os olhos e sonhar: quem
sabe, para nossa maior surpresa, um dia o sonho vai virar realidade
apesar de toda previsão...
Texto delicioso, muito poético.
ResponderExcluirMuito obrigada, é grande honra ser publicada no blog da Gislaine.
ResponderExcluirTexto maravilhoso, singelo, encantador!
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