1.
Darcy Ribeiro conta em um texto que não consigo encontrar fora da minha memória o seguinte: que certa vez ele se encontrava em uma tribo isolada e que depois de seis meses chegou-lhe uma remessa com várias coisas que havia solicitado para realizar a sua pesquisa. Junto com os pedidos enviaram também um exemplar do Dom Quixote, livro que Darcy Ribeiro adorava. Conta ele que se deitou numa rede, abriu o livro e começou a repassar alguns trechos, dando umas boas gargalhadas. Quando se deu por satisfeito, foi fazer outra coisa.
Um índio, que provavelmente nunca tinha visto um livro na sua vida, pegou o Quixote, deitou-se na rede, esfolheou o volume e começou a dar gargalhadas. O livro tinha se transformado nisso: em uma máquina de risadas.
Todo livro é um poderoso instrumento de comunicação e no seu interior há um decodificador ao qual é preciso sintonizar para estabelecer o contato.
Qualquer instrumento: livro, jornal, TV, internet pode ser uma máquina de risadas, de ódio, de propagação da violência, de apologia do terror, de exaltação do medo, se o decodificador não é sintonizado na frequência correta.
2.
Poucos meses antes de falecer, Umberto Eco lançou uma crítica feroz às redes sociais durante uma entrevista. Graças à internet, qualquer imbecil tinha adquirido o "direito" de fixar um espaço para exprimir as suas insensatezas. Houve muita polêmica ao redor de uma declaração que não reflete a complexidade de Eco, profundo conhecedor dos mecanismos da comunicação e também cronista da transformação digital pela qual passamos. Evidentemente, trata-se de comentários que ignoram o quadro mais amplo no qual o pensamento de Eco se insere. Trata-se de problema de decodificação na sintonia certa.
3.
Quem escreve nas redes sociais nem sempre tem noção da repercussão do que escreve. É como a pessoa que não conhece o livro e o utiliza como escorredor de massa. Já quem escreve "para" as redes sociais, ou sabe que o que escreve pode acabar nas redes, não pode agir com a mesma inocência.
Se um publicitário escreve "O melhor aluno da sala pode matar", deve saber que alguns irão ler a frase de forma literal, alguns irão associar a frase à imagem e dizer que o conteúdo é racista (o melhor aluno é representado por um jovem negro), alguns irão perceber que o verbo "pode" está associado ao sentido de evento possível, de casualidade, irão ler a frase abaixo da frase principal e entender que a mensagem está ligada ao problema da distração no volante, que aumenta exponencialmente quando se usa o celular ao dirigir.
Quer dizer: não basta dar um instrumento ao leitor. É preciso escolher o decodificador e, caso o objetivo não seja o de abrir-se aos múltiplos sentidos da língua (que pode ser um objetivo artístico, por exemplo), cabe também prever as possíveis sintonias. É preciso prever a leitura e as reações dos leitores.
4.
Um escritor pode dizer: não entendeu, problema seu. Um profissional da língua, pago para ser entendido, não pode dizer o mesmo. Arrogância de escritor ou ambição literária de outros profissionais? Nem uma coisa, nem outra.
A literatura não precisa e não deve ter objetivos específicos. A sua abertura às possibilidades da língua são tão mais visíveis quanto mais tempo os sentidos levam para ser completamente desvendados. Obras-primas raramente se deixam interpretar na leitura do primeiro crítico ou ao esgotar da primeira edição. Continuam a fornecer visões do mundo e a instigar a leitura em relação às experiências dos leitores de todos os tempos.
O publicitário, ao contrário, deve vender um produto ou uma ideia. A sua função não é ser artista, não é fazer gracinha fora da hora. Claro que no discurso publicitário podem-se usar as figuras de linguagem, as ambiguidades, as elipses. Mas o uso tem que ser bem dosado para controlar o acesso dos leitores e direcionar as interpretações.
Jornalista também não é artista nem comentarista. Deve contar os fatos nos detalhes, explicando o que aconteceu, quando, onde e por quê. Pode ser jornalista famoso, pode ser jornalista estrela, o essencial não muda: a reputação se faz com bom conteúdo, não com boas tiradas.
E o professor? Bem, o professor deve explicar as regras do jogo, a fim de que a partida ocorra sem grandes problemas. Deve, portanto, explicar infinitamente que na comunicação alguém fala, por meio de um canal, usando um código compartilhado com o destinatário, para transmitir um conteúdo em um determinado contexto. Se um dos elementos é mal empregado, a comunicação se transforma na máquina de risadas de Cervantes.
Darcy Ribeiro conta em um texto que não consigo encontrar fora da minha memória o seguinte: que certa vez ele se encontrava em uma tribo isolada e que depois de seis meses chegou-lhe uma remessa com várias coisas que havia solicitado para realizar a sua pesquisa. Junto com os pedidos enviaram também um exemplar do Dom Quixote, livro que Darcy Ribeiro adorava. Conta ele que se deitou numa rede, abriu o livro e começou a repassar alguns trechos, dando umas boas gargalhadas. Quando se deu por satisfeito, foi fazer outra coisa.
Um índio, que provavelmente nunca tinha visto um livro na sua vida, pegou o Quixote, deitou-se na rede, esfolheou o volume e começou a dar gargalhadas. O livro tinha se transformado nisso: em uma máquina de risadas.
Todo livro é um poderoso instrumento de comunicação e no seu interior há um decodificador ao qual é preciso sintonizar para estabelecer o contato.
Qualquer instrumento: livro, jornal, TV, internet pode ser uma máquina de risadas, de ódio, de propagação da violência, de apologia do terror, de exaltação do medo, se o decodificador não é sintonizado na frequência correta.
2.
Poucos meses antes de falecer, Umberto Eco lançou uma crítica feroz às redes sociais durante uma entrevista. Graças à internet, qualquer imbecil tinha adquirido o "direito" de fixar um espaço para exprimir as suas insensatezas. Houve muita polêmica ao redor de uma declaração que não reflete a complexidade de Eco, profundo conhecedor dos mecanismos da comunicação e também cronista da transformação digital pela qual passamos. Evidentemente, trata-se de comentários que ignoram o quadro mais amplo no qual o pensamento de Eco se insere. Trata-se de problema de decodificação na sintonia certa.
3.
Quem escreve nas redes sociais nem sempre tem noção da repercussão do que escreve. É como a pessoa que não conhece o livro e o utiliza como escorredor de massa. Já quem escreve "para" as redes sociais, ou sabe que o que escreve pode acabar nas redes, não pode agir com a mesma inocência.
Se um publicitário escreve "O melhor aluno da sala pode matar", deve saber que alguns irão ler a frase de forma literal, alguns irão associar a frase à imagem e dizer que o conteúdo é racista (o melhor aluno é representado por um jovem negro), alguns irão perceber que o verbo "pode" está associado ao sentido de evento possível, de casualidade, irão ler a frase abaixo da frase principal e entender que a mensagem está ligada ao problema da distração no volante, que aumenta exponencialmente quando se usa o celular ao dirigir.
Quer dizer: não basta dar um instrumento ao leitor. É preciso escolher o decodificador e, caso o objetivo não seja o de abrir-se aos múltiplos sentidos da língua (que pode ser um objetivo artístico, por exemplo), cabe também prever as possíveis sintonias. É preciso prever a leitura e as reações dos leitores.
4.
Um escritor pode dizer: não entendeu, problema seu. Um profissional da língua, pago para ser entendido, não pode dizer o mesmo. Arrogância de escritor ou ambição literária de outros profissionais? Nem uma coisa, nem outra.
A literatura não precisa e não deve ter objetivos específicos. A sua abertura às possibilidades da língua são tão mais visíveis quanto mais tempo os sentidos levam para ser completamente desvendados. Obras-primas raramente se deixam interpretar na leitura do primeiro crítico ou ao esgotar da primeira edição. Continuam a fornecer visões do mundo e a instigar a leitura em relação às experiências dos leitores de todos os tempos.
O publicitário, ao contrário, deve vender um produto ou uma ideia. A sua função não é ser artista, não é fazer gracinha fora da hora. Claro que no discurso publicitário podem-se usar as figuras de linguagem, as ambiguidades, as elipses. Mas o uso tem que ser bem dosado para controlar o acesso dos leitores e direcionar as interpretações.
Jornalista também não é artista nem comentarista. Deve contar os fatos nos detalhes, explicando o que aconteceu, quando, onde e por quê. Pode ser jornalista famoso, pode ser jornalista estrela, o essencial não muda: a reputação se faz com bom conteúdo, não com boas tiradas.
E o professor? Bem, o professor deve explicar as regras do jogo, a fim de que a partida ocorra sem grandes problemas. Deve, portanto, explicar infinitamente que na comunicação alguém fala, por meio de um canal, usando um código compartilhado com o destinatário, para transmitir um conteúdo em um determinado contexto. Se um dos elementos é mal empregado, a comunicação se transforma na máquina de risadas de Cervantes.
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