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ATIRARAM O PAU NA LÍNGUA, MAS O GATO NÃO MORREU

Em inglês, a palavra do ano foi "pós-verdade". Em italiano, a palavra foi "webete" (sem tradução em português), mas sinônimo - talvez com um traço de ironia - de outro neologismo: "troll". Em português já absorvemos esse inglesismo, criando o verbo "trollar", com o famigerado gerúndio "trollando", e o substantivo "trollagem". Um pecado? A consoante L, que não deveria ser dupla. Caso o termo pegue, os dicionários se encarregarão de solucionar o problema.

O que pensar desses sinais? São um sintoma de vitalidade da língua. Apenas línguas mortas não estão abertas a neologismos (embora também isso nem sempre seja verdade).

Não sei qual foi a palavra do ano em português, mas os números não decepcionam: o Dicionário Priberam publicou um comunicado no qual informa que em 2016 já foram acrescentados 840 verbetes à publicação eletrônica, explicando também os critérios adotados para a inclusão de uma palavra em vez de outra.

De fato, a vitalidade terminológica é evidente. Apenas nos últimos dias me deparei com três palavras novas para mim: felicismo, peemedebismo, pós-ridículo. Em 2016 tivemos: coxinhas, petralhas, isentões e muitas outras. Tudo ótimo, mas apenas novas palavras não são uma garantia de que as coisas vão bem para a língua.

Continuamos a sofrer de modo crônico nos aspectos sintáticos. Padecemos o mal da concordância incorreta e das frases incompletas. Temos não menos problemas com a semântica. Ignoramos e sobrevoamos com indiferença os termos a nós desconhecidos, embalados pelo mau costume de não consultar sistematicamente os dicionários e pelo pésssimo vício da acomodação aos nossos padrões comunicativos. É mais fácil pensar: eu sempre me expressei assim, se quiserem me entender que se esforcem. Pena que não aplicamos a máxima quando estamos diante do discurso do outro.

Sim, somos criativos e temos um vocabulário extenso. Damos valor à riqueza lexical. E nos perdemos nos nossos hábitos. Por isso, queria falar do gato: porque esses vícios são pedradas na língua, mas, como o gato, ela não morreu.

O que podemos fazer diante da tentação de repetir como um mantra: atirei o pau no gato, mas o gato não morreu?

Podemos nos esforçar para transformar a nossa afirmação em uma pergunta, que deixa espaço para o interlocutor refletir, quem sabe mudar de opinião, ou até mesmo nos fazendo mudar a nossa própria concepção inicial:

"Atirei o pau no gato. Você acha que ele morreu?"

Podemos usar uma frase afirmativa, útil quando queremos evitar palavras que possam ferir a sensibilidade do interlocutor:

"Atirei o pau no gato, mas o gato escapou do golpe."

Podemos usar uma figura de linguagem (aliás, muitas):

"Atirei o pau no gato centenas de vezes e nada de ele morrer." (hipérbole)

"Atirei o pau no gato e ele atirou-se nas asas de um anjo." (eufemismo)

"Atirei o pau no gato, como quem ataca o pior inimigo." (comparação)

Podemos recorrer a sinônimos, reino da semântica, não apenas para exercitar a nossa memória ou para ampliar o nosso vocabulário, mas para fugir das frases feitas e para surpreender o interlocutor com uma expressão inesperada:

"Alvejei o felino, porém ele não se abateu."

Podemos inverter a frase, salientando aquilo que consideramos mais importante:

"O gato não morreu, embora eu tenha atirado nele."

O "atirei o pau no gato" poderia ter muitas outras versões, que não listo aqui para não ser verborrágica. O importante é o conceito: uma língua rica em todas as suas esferas (lexical, semântica, sintática, fonológica) é um patrimônio individual e coletivo. Quando cultivamos um uso correto, adequado, contextualizado, cuidadoso da língua, não melhoramos apenas o nosso repertório pessoal, estamos contribuindo para a dimensão social da língua, pois tudo o que dizemos e escrevemos pressupõe a presença de um outro que ouve e lê. A língua é compartilhada. A sua riqueza ou a sua pobreza pertence a todos nós.

Portanto, quando você percebe que a ignorância mora ao seu lado, não adianta ridicularizar. Você está ridicularizando a sua capacidade de ser um modelo para os outros. O processo é contagiante, depende de todos, não apenas da família ou da escola, depende das relações sociais e do nível de comunicação que estabelecemos com os outros.

Querem um conselho? Não atirem o pau na língua. O gato vai ficar ferido. E vocês também.

Comentários

  1. Excelente. Aproveito para confessar que odeio a "canção" Atirei um Pau no Gato, por incitar a violência contra animais (brincar de matar, de machucar). Penso acho que, indiretamente, você contempla a ideia de não maltratar animais ao lembrar, no fecho, que não devemos atirar o pau na língua, ou seja, maltratar o idioma...

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    Respostas
    1. Concordo! É uma canção brutal: se pensamos que é dedicada ao público infantil, fica ainda pior. E quando aprendemos a usar também a língua de forma violenta, moldamos o nosso modo de ver e de vivenciar a realidade. A língua transforma o mundo, embora muita gente não acredite nisso.

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