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A SALSICHA VEGANA, O QUEIJO SEM LEITE, A LÍNGUA, COITADA

Lancei a pergunta no meu diário em uma rede social: "o que é uma salsicha vegana?" Recebi respostas sérias, irônicas, engraçadas, provocatórias. Uma das melhores respostas foi: é um oxímoro. Genial, porque é uma brincadeira, mas é uma verdade. O nome é realmente um oxímoro do ponto de vista semântico. Trata-se de uma expressão formada por conceitos incompatíveis: se é vegano não pode ser salsicha, se é salsicha não pode ser vegano. Portanto uma salsicha vegana, que incorpora termos excludentes, só pode ser um oxímoro, uma coisa quase poética, mas não é, porque salsicha não é um fogo que arde e não se vê, não é soneto. Salsicha não é uma série de coisas: a gente aprende isso na escola, quando estuda as bases da linguística estruturalista. Salsicha é uma coisa, de modo que exclui todas as outras. Portanto, salsicha não pode ser uma poesia e não pode ser uma abobrinha (outra resposta que evidencia jocosamente a problemática).
E salsicha de frango, ainda é salsicha? Salsicha de peru é salsicha? A gente brinca com a salsicha vegana, sem pensar que já nos acostumamos a comer um embutido que tem pouco a ver com o produto original. Lembro de uma crônica do Luis Fernando Verissimo, na qual ele dizia que era melhor a gente não saber o que colocam dentro de uma salsicha. Mas como podemos nomear a coisa sem saber as suas particularidades? Claro, quando o nosso espírito científico atinge certo grau de curiosidade, chegamos a descobrir como fazem uma salsicha de verdade. E geralmente ficamos arrependidos de ter descoberto. Há rios de artigos que denunciam falsificações da indústria alimentar e explicam porque as salsichas são alimentos "pobres" para a nossa alimentação. A salsicha aceita tudo. Portanto a salsicha pode ser vegana, pronto.
Por trás de tudo isso, há outras complicações. Por exemplo, além de nomes, as coisas às vezes estão ligadas a uma patente de produção e a uma marca. Há queijos na Europa que possuem um certificado DOP, a denominação de origem protegida, pois o queijo só pode ser considerado autêntico se produzido com o leite da vaca (ou de outro animal) que pastou nos campos da região em que é produzido. É uma espécie de patente. E isso tem sentido, pois o que a vaca come é um mix de minerais e vitaminas que caracterizam o pasto cultivado em um solo com determinadas características. É um encadeamento de fatores. Não adianta chorar: muçarela mesmo, só em Nápoles, em Salerno ou em Latina. O resto é outra coisa, mas não é muçarela.
Ah, e a língua, coitada... A língua também aceita tudo. A língua é democrática, a língua é de todos: veganos, onívoros e carnívoros. E se a salsicha vegana cair na boca do povo, a língua terá de acolhê-la nas páginas dos dicionários e nas gramáticas respeitáveis, como um bom membro da família.
O que acontece com a salsicha vegana é um caso linguístico-publicitário-comercial. O fato linguístico: a língua acolhe o termo, que permite aos falantes identificarem o novo produto com um produto já conhecido. A língua possui os recursos e os oferece a quem quiser usá-los. Já o publicitário usa os termos salsicha e vegano como chamariz para um público que não quer mais comer carne, mas que cresceu em uma sociedade carnívora, que reconhece na salsicha um produto com uma forma, aspecto, dimensão, etc. bem específicos. O fato comercial vem no embalo: tudo é lucro, quando não vira guerra de concorrência. E para enfrentar a batalha, os produtores criam padrões exclusivos, indicam os ingredientes específicos e colocam a tal etiqueta DOP que mencionei acima. Fazendo isso, excluem os que usam o mesmo nome para indicarem coisas diferentes.
Em uma ponta a língua, na outra a patente comercial. A gente fala, brinca, ironiza e às vezes não percebe o que há por trás de um simples nome. Como não percebe o que há dentro de uma salsicha. Dá para engolir? Dá, para para engolir tudo na vida. Mas nada substitui a satisfação de degustar um alimento e de saborear o som de um termo sabendo de onde vem, como foi preparado, o que significa, como ingressou no nosso cardápio e no nosso dicionário.
É por isso que gosto de falar de língua: porque falando da língua a gente fala do mundo. O mundo real. A língua não é um punhado de sons jogados ao vento. Ah, não é não.

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