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TROCADILHOS NA PONTA DA LÍNGUA

Há algumas semanas fui apresentada a uma colega de profissão que, ao saber que era brasileira, comentou: “ah, você escreve em português do Brasil...”. Eu corrigi: “não, escrevo em português do acordo”. 



Quando mencionei o “Acordo” vi uma nuvem em seus olhos. A questão continua causando grandes debates. Então corrigi as minhas palavras: “... ou do desacordo, como quiser”. 

Ouvindo  trocadilho, a colega que tinha feito as apresentações correu para apagar o fogo: “hoje é dia de festa, não vamos brigar por isso”. E quem pensava em brigar? Eu estava apenas brincando para não dramatizar uma questão que poderia ter sido de fato (ou facto) a melhor ocasião dos últimos tempos para ficarmos unidos pela língua.
Ficar unido não é ficar igual, não é estabelecer um patamar medíocre, mas significa ampliar os nossos horizontes linguísticos e culturais, mantendo a base ortográfica como plataforma comum. Todas as outras esferas da língua (lexical, semântica, sintática, pragmática) continuam tendo as suas peculiaridades locais, como já acontece no interior de cada um dos países lusófonos.
Trocadilho infeliz? Nem tanto. Passadas as semanas, continuo achando graça nessa presença de espírito que é uma das nossas riquezas. As tiradas, as ironias, os trocadilhos não são um elemento para provocação gratuita, pois funcionam quando o código é compartilhado. É preciso encontrar a colaboração do interlocutor para que se consumem. Felizmente, na maior parte dos casos, temos boa vontade como falantes e tudo funciona como previsto. A sensação de bom humor é um dos sinais de que os interlocutores aceitam entrar no jogo e isso, para além dos trocadilhos, dá um ar de alegria e de confiança no outro que ajuda a dar uma boa impressão da língua para quem ouve e quem participa de uma conversa em português.
Quem tem medo de trocadilho esconda a mão. Os trocadilhos estão em uma esfera de grande vitalidade da língua. Ao criá-lo, desloca-se o significado de uma palavra, gerando não apenas situações jocosas ou críticas, mas erros criativos, rimas e ambiguidades, para ficar apenas em algumas funções.  Os trocadilhos revelam uma língua capaz de reinventar-se, uma língua viva.
Que um jornalista ou um publicitário faça um trocadilho de vez em quando é de se esperar. Que o façam os poetas, também. Mas não canso de ficar maravilhada quando bisbilhoto os comentários dos leitores nos jornais e encontro trocadilhos criativos como esses:
“Antes de colocares os dedos no teclado devias aprender a escrever, seu analfabeto... ou melhor, analfabesta...”
“A corda tinha que quebrar do lado mais fraco, todos já sabíamos disto, o bobo da corte foi exposto. Só porque é um despreparado, semi-analfabesta, em outras palavras é novo na malandragem, os raposas velhas trataram logo de inocentar...”
São exemplos que unem as duas margens do oceano Atlântico. Confesso que é a primeira vez que vejo o neologismo “analfabesta”, mas pelo número de resultados da rede parece que tem tudo para entrar com força na língua. Achei mais importante citar isso que as dezenas de slogans, frases e rimas que podem ser encontrados facilmente nos exemplos que explicam os tipos de trocadilhos em português. A razão é simples: quando um trocadilho começa a ser usado sem o aval de formadores de opinião, estamos diante de uma comunidade de falantes capaz de gerar novos significados. Uma comunidade ativa. É um ótimo ponto de partida para avaliar a potencialidade desses falantes, lembrando que os nossos falantes estão bem longe de serem exemplares. Quem quiser ser professor e enfrentar esses desafios, dificilmente terá tempo para entediar-se.

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