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A PÁTRIA, A MÃE E A LÍNGUA

                                           
                   "Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
                   Em que da voz materna ouvi: 'meu filho!'"

Não é novidade o meu apreço pelo poema "Língua Portuguesa", de Olavo Bilac, do qual cito os dois versos acima. 
O poema inteiro é uma declaração de amor pelo português. Assim como amorosa e radical é a definição de Fernando Pessoa, por meio do heterônimo Bernardo Soares:

"Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente, Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa própria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ípsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
Sim, porque a orthographia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-m'a do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha."

O que gostaria de ressaltar nas citações é a relação dos autores com o amor profundo que os liga à língua: para Bilac, o português evoca os laços com a mãe; para Pessoa é o território no qual a sua própria vida toma forma, dissolvendo fronteiras e subvertendo o sentido comum da palavra "pátria".

A difusão das línguas acompanha as conquistas territoriais. Mas as conquistas também implicam a ideia de imposição da língua do conquistador. A história é milenar. Acompanhou a expansão do Império Romano, a conquista das Américas, a colonização da África. 

O comércio gera processos diferentes: os comerciantes deixam vestígios no léxico, contaminam pronúncias, enriquecem as línguas. O comércio faz intercâmbio.

Mas para o indivíduo, a língua nunca deixa de ter uma relação primordial com a mãe, com a pessoa que acompanhou os primeiros passos na interação do sujeito com o mundo. Por isso, todos temos uma língua materna. A língua materna diz muito sobre o que somos, sobre como estruturamos mentalmente o nosso conhecimento do mundo e como comunicamos o mundo que vivenciamos.

Quando mudamos de pátria, inevitavelmente, a língua materna e a língua do território em que vivemos entram em relação. Às vezes conflitual, às vezes amistosa. Geralmente, os governos ignoram isso: para a burocracia, as pessoas devem falar a língua do país e ponto final. Mas também não faltam exemplos de arbitrariedades, quando proíbem falar a língua de origem, como as que vivenciamos no Brasil: durante o século XVIII, quando Portugal proibiu o uso da língua geral, e durante a Segunda Guerra Mundial, quando Vargas proibiu o uso do alemão e do italiano.

É importante não confundir a instrumentalização política que ocorre quando os governos estabelecem regras sobre o uso das línguas com a oportunidade de alargar as nossas fronteiras pessoais por meio do estudo de uma língua estrangeira. A adoção de um novo idioma, apesar do fato de que em geral isso é feito por imposição e para criar barreiras políticas à imigração, é positivo para quem se disponibiliza a ser adotado por uma nova língua-pátria.

Nessa briga entre língua-mãe e língua-pátria, ninguém perde, pois, em termos de comunicação, os limites dos indivíduos realmente são fixados nas suas capacidades de relação. Parafraseando Fernando Pessoa, eu diria: as línguas são as minhas pátrias, porque posso ir, compreender e vivenciar como minhas as experiências naqueles lugares onde posso entender e ser entendido.

Comentários

  1. Gislaine, me impressionou o seu artigo. Gostaria que você comentasse, explicasse mesmo, o que Bilac de fato odeia. Porque o que ele não odeia, é mais claro... Bjs.

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  2. Olá, Claudia! Obrigada pelos comentários desafiadores. Não sou especialista em Pessoa, portanto esta breve reflexão é apenas uma contribuição pessoal. Lendo a declaração de amor de Bernardo Soares, o que se evidencia, para mim, é a autonomia que o texto escrito adquire no momento em que é fixado na página. Muito tempo depois, já nos anos 60 do século XX, os estruturalistas iriam adotar essa postura, analisando o texto sem considerar (muito) o autor. O texto adquiria assim um estatuto, uma permanência e um valor documental independente de quem o escreveu. O texto testemunha a língua e o seu momento histórico. É na página escrita que Pessoa fixa a sua atenção. Na página bem escrita ou mal escrita... Quando condena a página mal escrita e afirma que não odeia quem escreve mal o português, penso que a nossa língua é o "rude idioma", como dizia Bilac, porque surge numa sociedade formada na sua maioria por analfabetos. Talvez seja esse o motivo pelo qual, para Pessoa, é a página bem escrita que lhe chama a atenção. Uma página mal escrita devia ser (como continua a ser em certos contextos) um escândalo, porque aos poucos letrados não se podia imputar a ignorância da maioria, mas o lapso, o erro crasso, a distração. Na verdade, todo mundo que trabalha com a língua vive esta situação: quem conhece bem o idioma, domina as regras e os códigos de comunicação, fica extremamente irritado quando encontra um erro na página. Talvez fique ainda mais irritado quando percebe o próprio erro. Eu fico bastante frustrada, embora saiba que todos estamos sujeitos ao lapso. Sei que não sou perfeita, mas uma página mal escrita, ainda que seja minha, e ainda que eu reconheça as minhas limitações, fere os meus olhos! A perspectiva apontada por Pessoa é interessante, porque leva as pessoas a pensarem nos textos e não nas suas inevitáveis limitações pessoais. Concorda?

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