"Os empresários da indústria automobilística indenizaram, por acaso, os donos de carroças puxadas a cavalo?"
Esta não é uma frase dita casualmente, mas é o tipo de
afirmação que requer do interlocutor prontidão de sentidos para ativar a
memória e elaborar uma resposta à altura da malandragem.
Empresários como o autor da frase acima, que é fundador do
Uber, não são apenas raposas nos negócios, também são águias na língua. A
eficácia na comunicação é essencial para destruir um adversário no
campo do comércio. Não por acaso, a "diplomacia" da indústria é chamada
de departamento de comunicação externa e institucional. A guerra à
concorrência se ganha na lábia (e no lobby).
Sim, os cocheiros não foram indenizados. Na época da
invenção do automóvel não havia grandes sindicatos, os cocheiros eram
"profissionais autônomos", não tínhamos passado pela II Guerra Mundial e
nenhum governo europeu tinha descoberto ainda que o estado de bem-estar
social (com garantias para trabalhadores e serviços sociais eficazes e
públicos) era uma espécie de seguro para a paz social.
O autor, achando que a maioria tem memória curta, aposta na
frase de efeito. A sua escolha é coerente com o espírito de livre
iniciativa, que aposta no risco controlado, mas também evidencia uso do
princípio de probabilidade, um conceito matemático, e conta ainda com
uma estrutura comunicativa exemplar, capaz de fazer Platão se revirar na
cova.
"Garçom, manda mais uma dose de cicuta!" - diria o mestre.
Mas faria isso não sem antes esculachar o empresário com o insulto que
ele mais gostava de usar contra os adversários da dialética: "Sofistas!"
De fato, a arte da construção eficaz de uma falsa verdade
consiste em partir de uma falsa premissa e seguir usando argumentos
coerentes, que levam à falsa conclusão. Lida de forma
descontextualizada, a frase do fundador do Uber faz todo sentido. Mas
basta pensar nos avanços que obtivemos, a um custo altíssimo, para
entender que não se trata de livre concorrência, mas de renunciar a um
patamar de garantias do qual nenhum taxista (e trabalhador em geral)
está disposto a abdicar.
Quer dizer: uma tecnologia avançada não vale o precariado que nos espera pela frente.
Quer dizer: entender o discurso do outro, conhecer os
instrumentos utilizados e usar uma estratégia eficaz na polêmica é uma
lição antiga e sempre atual.
Se Uber é a última moda, Platão é um clássico que nunca sai de moda.
Se Uber é a última moda, Platão é um clássico que nunca sai de moda.
Comentários
Postar um comentário