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SE NÃO TEM MACHADO, CACE COM CARPINEJAR

Ando às voltas com a memória. Essa longa quaresma trouxe-me à mente minha avó, as suas expressões arcaicas e belas, que já no meu tempo de menina pareciam palavras erradas. Quando era menina, evitava repeti-las, nem a minha professora usava aquelas palavras! Mas quando descobri a nossa língua velha e mofada, aquela preciosidade que a gente despreza com a inconsciência de quem joga fora uma camisa desgastada, descobri as palavras de minha avó. Eram tantas. 
No meio tempo tornei-me professora. E às vezes, para não perder o hábito e conservar a memória, perguntava para a nossa experiente secretária da escola se ela usava esta ou aquela palavra. Cara Nely, que ainda está lá, enquanto eu me encontro agora em outro arraial... A nossa secretária era mineira, minha avó era gaúcha, mas muitas vezes descobri com ela que em termos de tempo a língua é generosa e não faz muitas distinções regionais. 
Talvez dessa experiência familiar e da minha natural inclinação para a língua venha essa minha obsessão pelas palavras que estão sumindo do nosso uso, o que eu chamo de "palavras em via de extinção".
Uma delas: quarar.
Há duas explicações para a grafia dessa palavra: uma diz que é uma corruptela de "corar", que é uma síncope do termo "colorare", do latim. Outra que acrescenta à primeira explicação uma provável influência da língua tupinambá, por associação ao termo "kwara", que significa "sol". De todo modo, trata-se de um brasileirismo. Para nós, em geral, significa expor a roupa ao sol para branquear.
"Quarar" desaparece da língua com a velocidade da tecnologia e das mudanças sociais. No tempo da minha avó as casas possuíam quintais e as pessoas utilizavam o sol como aliado para a lavagem e secagem da roupa. Hoje temos produtos para branquear, máquinas para lavar e para secar. E não temos mais quintais. Quarar caiu em desuso.
Mas quarar estava na minha cabeça, e tinha certeza de que Machado de Assis, com a sua brilhante elegância, tinha sabido utilizar o termo na sua obra. Não encontrei. Será que a minha memória me engana? 
Não deu com o Machado, deu com o Carpinejar.
Encontrei em um conto seu uma daquelas pérolas, que desloca o sentido de "quarar" para o poético.
Cito o trecho e a fonte: 

"Tinha vergonha de minha mãe. 

Trabalhava na escola de servente. Logo na escola em que estudava. 

Lavava os banheiros e limpava as salas. Durante a aula, não colocava nenhum papel no chão, nenhum madeira do apontador, nenhum espiral das folhas porque ela teria que levantar. Eu sabia que ela levantaria. Entristecia-me quando um colega soprava farelos de bolo de sua carteira para o parquê. Em pensamento, minha mãe recolheria o fermento desmoronado com sua pazinha e vassoura. 

Quando ela vassourava no serviço, não a cumprimentava, ainda mais acompanhado de meus amigos. Eu queria, mas não conseguia formular sopro e saliva. Parece fácil e natural dizer oi para a mãe, mas não é. Quando me encorajava a subir a voz, ela baixava a cabeça com meu constrangimento e não estávamos mais próximos. Dois corredores paralelos. O único saguão em que nos encontrávamos terminava sendo nossa casa. 

Ela me criava sozinha. Não conheci meu pai. Recortava homens de revistas velhas para colar no lugar dele nos álbuns de família. Burt Lancaster, Paul Newman, Marlon Brando. Minha mãe foi deixando para não entrar em detalhes. Não perguntava, ela não respondia, nosso contentamento vinha da escova de suas mãos arrumando minha franja. "Vai com Deus". 

No final da segunda série, a professora pediu para que os alunos escrevessem uma redação falando de seus pais. Precisavam dizer o que faziam, qual a sua profissão. 

Fui emborcado de timidez. Rubor. Fui ao banheiro chorar, quarar o rosto, aguardar que o tempo passasse rápido e a turma esquecesse de mim. Dois períodos para confessar o que não podia; os colegas iriam caçoar de mim a vida inteira. Minha mãe me viu gemendo, e entrou no banheiro. 

- Sai, não pode vir aqui, mãe! É banheiro masculino... 

Ela me alcançou pelo choro. Entendeu que era meu choro, como só nossa mãe compreende entre milhares de choros na praça, no recreio, no mercado."


Minha mãe também tinha as suas criatividades. Uma das coisas mais divertidas para mim era ouvir dela quando o ônibus não passava: "será que vamos ficar muito tempo quarando na parada?"

Quero quarar. Quero quarar na língua portuguesa. 

Comentários

  1. Roberto Vivian Mascareñas4 de abril de 2013 às 12:39

    Muito criança, lá pelo fim dos anos 1960, eu era advertido para não chutar a bola na direção dos lençóis quarando nos quintais sem muro da minha vizinhança.
    Eu pensava que as mamães deveriam pendurá-los nos varais para secar. Mas logo vi que eles não estavam ali para secar, porque as mamães tornavam a umidecê-los com um regador de plantas... Não estavam secando, mas quarando.
    Obrigado por me lembrar dessa palavra e de todo um tempo que essa recordação encerra. Quintais sem muro. Quintal (nunca mais tive um).
    Eu via roupas quarando do lado de fora das casas, sobre vegetação rasteira, naquilo que depois cobriram de cimento e chamaram de calçada.
    De uma forma ou de outra, tudo ficou impraticável ou mesmo proibido.
    Recordo-me, agora, de Raimundo Sodré cantando "A Massa" num festival de música da Globo em 1980. Aquela canção que começa com os versos
    "A dor da gente
    é dor de menino acanhado
    menino-bezerro pisado
    no curral do mundo a penar"
    ... e termina com o lamento:
    "Torna a repetir meu amor: ai, ai, ai!
    É que o guarda civil não quer a roupa no quarador"
    ...

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  2. Escrevo este comentário para agradece-la pela tradução de um neologismo. Depois de passar algum tempo "escarafunchando" os resultados de uma busca no Google, quase desisti de procurar o significado da palavra -que parecia ser exilado, chutado ou marginalizado- e a mantive da mesma forma que encontrei mas sem oferecer qualquer explicação aos prováveis leitores do blog que mantenho.

    Mas, e há sempre um mas (como escrevia alguém no Pasquim), coloquei na janelina do google "exodado & italia" e eis que aparece na primeira linha da página o endereço de seu blog com um maravilhoso texto a respeito da... maldita palavra.

    Estou sinceramente agradecido pelo texto e gostaria muito que não se importasse pela sua inclusão numa nota num dos posts do meu blog (NEBULOSA.DE.ÓRION - (http://josejustino.blogspot.com.br/2013/04/na-italia-um-casal-de-anciaes-cometeu.html)

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  3. Minha namorada, a mulher que casou comigo há quase quarenta anos, deixou-me espantado há pouco tempo quando utilizou pela primeira vez, salvo engano, a palavra quarar.

    Ora, sendo ela carioca de Vila Isabel e eu mineiro de Belo Horizonte que cresceu em Pirapora -nas barrancas do São Francisco, em cujas margens ponteavam pedras que às vezes apresentavam diversos coloridos pelas roupas estendidas sobre elas pelas lavadeiras- como poderia empregar uma palavra que ouvi apenas naquela região do norte de Minas?

    Ali, nas barrancas, no cais e nas pedras do rio, a palavra era corriqueira há dezenas de anos atrás. Mas, como diz o seu texto, pode ser que agora a parafernália eletromecânica e as sopas químicas que sempre prometem lavar mais branco tenham levado aos poucos seu abandono.

    Uma boa lembrança da infância apenas com a menção de uma palavra.

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  4. É por essas e outras lembranças que vale a pena cultivar a nossa língua. Afinal de contas, a língua é expressão da nossa emoção.

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