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QUEM É QUEM NA LÍNGUA

Que pessoas não são números todo mundo sabe, embora a crescente digitalização de nossas vidas esteja codificando quase todos os setores de nossa experiência pessoal. Mas que a personalidade seja um fator fundamental na economia poucos estão explorando ainda. Os economistas George Akerlof e Rachel Kranton investiram no estudo do tema e os resultados podem ser vistos no seu livro: "A Economia da Identidade", traduzido em várias línguas, além do português.
O que isso tem a ver com a língua? Em primeiro lugar, a língua e o estilo pessoal de cada um são uma marca que caracteriza a nossa comunicação com os outros e influenciam a percepção que os outros têm de nós. Além disso, a própria língua está sujeita a personalidades fortes, que marcam momentos da história introduzindo novas expressões, revigorando velhas expressões ou gerando termos ligados ao nome próprio.
No Brasil, por exemplo, as novelas exercem (muitas vezes no mau sentido) o papel de vetor de novas expressões idiomáticas. O termo usado por um ou outro personagem popular cai literalmente na boca do povo. Se não se trata de vício de linguagem, acaba tornando-se vício pelo uso excessivo. Mas em todo caso demonstra o poder da "persona" na revitalização da língua.
Há também o caso contrário, da reabilitação de velhas expressões. Caso magistral o trabalho feito por Guimarães Rosa em sua obra literária, colocando novamente em circulação na língua o uso de termos arcaicos e a renovação de velhos termos, criando verdadeiros neologismos.
Por fim, há o caso das pessoas, cujo nome próprio gera termos derivados. Quanto maior a a fama da pessoa em questão, maior a possibilidade de difusão dos termos em diferentes línguas.
Sem fazer uma digressão histórica sobre o tema, que já tem uma longa estrada, deixo aqui uma pequena lista de nomes que gerados e nomes próprios e que geralmente possuem tradução análoga em outras línguas. Observar com atenção essa categoria de palavras - gramaticalmente são chamados deônimos - pode ser útil na hora de comunicar em outra língua, e pode ser uma fonte para a redescoberta de histórias cujos vestígios às vezes ficam empoeirados pela pouca curiosidade dos falantes.
Com os exemplos práticos, espero que a premissa fique mais clara para o leitor.
Acadêmico - vem do nome Academo, que doou o espaço para a escola de Platão nas proximidades de Atenas. Hoje acadêmico quer dizer pessoa douta, quem poderia imaginar que era um mecenas (outro deônimo) iluminado?
Alfarrábio - é uma palavra de que gosto muito, que nos liga a um mundo distante e enraizado na nossa cultura, sem que muitas vezes percebamos isso. Vem do nome do filósofo muçulmano Abu Nasr Muhammad Farabi, também conhecido como Avennasar ou Al-Farabi, porque proveniente da província de Farab, no atual Turquistão. Na Idade Média foi o procursor de uma linha filosófica muito importante, que abrangia várias áreas do conhecimento, das ciências naturais à ética. Exatamente por estar associado a vasto conhecimento (e antigo), o termo alfarrábio está ligado a livros (ou anotações) velhos, de outros tempos. Nem sempre porém, o termo conserva o sentido de conhecimento valioso, às vezes os falantes usam "alfarrábio" para associar a uma "velharia".
Bechamel - o famoso molho vem de Louis de Béchamel, a quem foi dedicada a receita original. Caso análogo para o termo sanduíche, que vem do nome do conde de Sandwich, por seu costume de comer os pãezinhos recheados durante os momentos de distração.
Panfleto - quem diria que essa palavra tem origem no nome do protagonista de uma popular poesia do século XII, um certo Pamphilus? Tão popular que até hoje o panfleto é sinônimo de informação para distribuição de massa.
Crasso - é muito comum em português a expressão "erro crasso", um erro grosseiro. Pois o tal Marco Licínio Crasso, famoso general romano, cometeu um erro fatal de cálculo, que custou não só a batalha, mas a sua reputação. Dizer "erro crasso" é dizer erro que poderia ter sido previsto e evitado. Um desastre.

Há muitas outras palavras que se formam a partir do mesmo princípio, ou seja, derivação a partir de um nome próprio. O próprio nome da capital portuguesa, Lisboa (antiga Olissipo), teria vindo do nome do herói da Odisséia, Ulisses, que ali no extremo da Europa teria feito uma das etapas de sua grande aventura.

Trata-se quase sempre de palavras com um gostinho exótico, que chama a atenção e podem revelar histórias surpreendentes: boicote, silhueta, guilhotina, benjamim (quer dizer, extensão elétrica dupla ou tripla - deixo à imaginação dos leitores a função da extensão e a associação ao famoso experimento de Benjamin Franklin com os raios), etc.

A língua é realmente uma caixinha de surpresas.




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