Caro Montaigne,
os canibais usam calças há muito tempo. Aprenderam a língua do homem branco e no próximo ano poderão festejar os vinte e cinco anos de status de cidadão com plenos direitos. Sim, hoje os canibais podem exercer plenamente, usando a língua do homem branco, o direito de reclamar suas terras usurpadas. Hoje eles são livres para dizer que querem continuar vivendo onde sempre viveram. Hoje eles vivem em uma democracia. Hoje eles são minoria e, visto que vivem em uma democracia, há muito mais gente (que não conhece a sua língua e muito menos os seus costumes) que acha que deslocar uns poucos canibais de sua casa é só uma questão de mudança de endereço. Afinal, caro Montaigne, esses milhões de pessoas que pesam na balança da democracia jamais seriam deslocados de suas casas, porque mudar o endereço de tanta gente seria numericamente mais complicado e oneroso do que mudar o domicílio da minoria. Os canibais continuam vivendo em uma situação de relativa pobreza, mas são livres; e, como são livres, ninguém tem nada a ver com isso. A pobreza alheia, em uma sociedade livre e democrática, é um problema privado. Mas tirar as pessoas de suas casas, desenraizá-las de seu território e dos locais da sua tradição é uma questão de desenvolvimento. Sempre em nome da maioria, claro.
Caro Montaigne, eu sou uma mulher simples. Sou quase canibal. Por isso, custo a entender o conceito de democracia, de liberdade e de desenvolvimento que o homem branco usa hoje. Percebo que os recursos da língua são substituídos por estatísticas, projeções, gráficos e tabelas. A democracia é uma questão de número. E os números, dizem, não mentem. Sim, os números não mentem, mas também não contam a verdade. Os números descrevem. O senhor Montaigne não ficaria espantado se descobrisse que para muitos expoentes que guiam a nossa grande democracia a questão não é concordar ou discordar das escolhas impostas numericamente aos canibais. Mas eu, que sou uma mulher simples, fico maravilhada com o fato de termos sido capazes de penhorar a tal ponto os nossos mais essenciais ideais de respeito pelo outro.
Os canibais usam calças há muito tempo, percebe? É a vitória da maioria.
Provavelmente esta é a penúltima vez que escrevo para o senhor. Não há lugar para Montaigne no presente, neste mundo de homens que usam calças! Mas sou otimista, haverá quem sabe um lugar para Montaigne no futuro. E quando este futuro chegar, ninguém mais será obrigado a usar calças, a falar uma determinada língua e a receber uma cidadania para que possa ser vencido numericamente. No futuro essas escolhas poderão ser feitas livremente e a liberdade será uma medida de respeito, não uma palavra de circunstância, usada para ocultar a prepotência, a superficialidade e a hipocrisia.
Até logo, senhor Montaigne!
os canibais usam calças há muito tempo. Aprenderam a língua do homem branco e no próximo ano poderão festejar os vinte e cinco anos de status de cidadão com plenos direitos. Sim, hoje os canibais podem exercer plenamente, usando a língua do homem branco, o direito de reclamar suas terras usurpadas. Hoje eles são livres para dizer que querem continuar vivendo onde sempre viveram. Hoje eles vivem em uma democracia. Hoje eles são minoria e, visto que vivem em uma democracia, há muito mais gente (que não conhece a sua língua e muito menos os seus costumes) que acha que deslocar uns poucos canibais de sua casa é só uma questão de mudança de endereço. Afinal, caro Montaigne, esses milhões de pessoas que pesam na balança da democracia jamais seriam deslocados de suas casas, porque mudar o endereço de tanta gente seria numericamente mais complicado e oneroso do que mudar o domicílio da minoria. Os canibais continuam vivendo em uma situação de relativa pobreza, mas são livres; e, como são livres, ninguém tem nada a ver com isso. A pobreza alheia, em uma sociedade livre e democrática, é um problema privado. Mas tirar as pessoas de suas casas, desenraizá-las de seu território e dos locais da sua tradição é uma questão de desenvolvimento. Sempre em nome da maioria, claro.
Caro Montaigne, eu sou uma mulher simples. Sou quase canibal. Por isso, custo a entender o conceito de democracia, de liberdade e de desenvolvimento que o homem branco usa hoje. Percebo que os recursos da língua são substituídos por estatísticas, projeções, gráficos e tabelas. A democracia é uma questão de número. E os números, dizem, não mentem. Sim, os números não mentem, mas também não contam a verdade. Os números descrevem. O senhor Montaigne não ficaria espantado se descobrisse que para muitos expoentes que guiam a nossa grande democracia a questão não é concordar ou discordar das escolhas impostas numericamente aos canibais. Mas eu, que sou uma mulher simples, fico maravilhada com o fato de termos sido capazes de penhorar a tal ponto os nossos mais essenciais ideais de respeito pelo outro.
Os canibais usam calças há muito tempo, percebe? É a vitória da maioria.
Provavelmente esta é a penúltima vez que escrevo para o senhor. Não há lugar para Montaigne no presente, neste mundo de homens que usam calças! Mas sou otimista, haverá quem sabe um lugar para Montaigne no futuro. E quando este futuro chegar, ninguém mais será obrigado a usar calças, a falar uma determinada língua e a receber uma cidadania para que possa ser vencido numericamente. No futuro essas escolhas poderão ser feitas livremente e a liberdade será uma medida de respeito, não uma palavra de circunstância, usada para ocultar a prepotência, a superficialidade e a hipocrisia.
Até logo, senhor Montaigne!
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