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A REPÚBLICA E A ARTE DE SER COPISTA

Viva a República! Viva a "res publica", viva a coisa pública! Palmas para os que honram a república. Pensemos nessa jovem senhora República brasileira e em um dos seus melhores e mais atuais cronistas: o grande Machado de Assis.

Imitar a arte dos grandes é já um grande trabalho. Machado, grande leitor e conhecedor de outras culturas, soube aproveitar as lições do passado sem fazer manifestos e alardes como os modernistas, mas o tempo confirma para mim que ele é o mais límpido, mais moderno e contemporâneo dos nossos grandes autores.
Soube reler os clássicos e os seus contemporâneos com o filtro da ironia e com a inteligência de quem sabe reconhecer a atualidade do passado. Foi até certo ponto grande copista, na melhor tradição de conservação dos tesouros da cultura, e um inovador elegante e genial.

Aprender português com Machado é um privilégio acessível a todos. Cito uma passagem de Esaú e Jacó, uma de suas obras que está entre as minhas favoritas, para compartilhar com o leitor um exemplo do que chamo de escrita límpida e extremamente eficaz.
Trata-se do início do capítulo "Recuerdos", que me sugere a técnica de deslocamento e sobreposição já utilizada em Cartas Chilenas, de Tomás Antônio Gonzaga, ou seja, de falar de um problema nacional, aludindo a uma situação no exterior. 

Contextualizo a situação: o narrador relata no capítulo anterior as reflexões do Conselheiro Aires (o protagonista da narrativa) sobre os protestos da multidão contra a prisão de um ladrão. O homem defende-se, mas acaba sendo levado para a delegacia. O narrador então comenta: "Não diziam ladrão, mas gatuno, fiando que era mais doce, e tanto bradavam há pouco contra a ação das praças, como riam agora das lástimas do preso". Após a descrição da volubilidade da multidão e lançando com sutileza ao leitor a reflexão sobre a diferença entre "ladrão" e "gatuno", o narrador encerra o capítulo com a narração desta cena: "Ia a descer pela Rua Sete de Setembro, quando a lembrança da vozeria trouxe a de outra, maior e mais remota". É neste ponto que se abre o capítulo "Recuerdos", uma das pérolas do romance:

"Essa outra vozeria maior e mais remota não caberia aqui, se não fosse a necessidade de explicar o gesto repentino com que Aires parou na calçada. Parou, tornou a si e continuou a andar com os olhos no chão e a alma em Caracas. Foi em Caracas, onde ele servirá na qualidade de adido de legação. Estava em casa, de palestra com uma atriz da moda, pessoa chistosa e garrida. De repente, ouviram um clamor grande, vozes tumultuosas, vibrantes, crescentes...
— Que rumor é este, Carmen? perguntou ele entre duas carícias.
— Não se assuste, amigo meu; é o governo que cai.
— Mas eu ouço aclamações...
— Então é o governo que sobe. Não se assuste. Amanhã é tempo de ir cumprimentá-lo. Aires deixou-se ir rio abaixo daquela memória velha, que lhe surdia agora do alarido de cinqüenta ou sessenta pessoas."


Esse é o episódio de melancólica ironia que encadeia e sugere associações com a realidade do leitor da época, mas também atual. Faz isso revelando o processo mental da personagem, descrevendo a sua linha de pensamento. No contexto da narrativa, que se situa nos últimos momentos do Império indo até o início da República, passando pela abolição da escravatura (descrita poucas páginas antes do episódio citado), o texto implicitamente convida o leitor a refletir sobre a percepção que se tem a respeito dos diferentes governos e a respeito de ladrões e gatunos... Os episódios são justapostos, mas as associações são sobrepostas.

Esse processo complicado é realizado por meio de um exemplo de vida, por meio de uma didática pragmática, por meio de uma linguagem clara, narrante, fabulesca, que aborda problemas consistentes por meio de uma espécie de parábola sem uma conclusão pronta e moralizante. O juízo fica a cargo do leitor, continuamente chamado a refletir e pensar pelo narrador.

Aí está a minha reflexão sobre esse dia da República. Pensemos, seguindo os passos de Machado. Quem sabe a releitura nos ajude a ser menos volúveis e suscetíveis a fatos circunstanciais. Quem sabe possamos olhar para o passado, fazer um balanço e renovar mais uma vez a nossa confiança no futuro. 


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