A interpretação é a maior tentação para a ciência. Ela está aí, e vamos fazendo ciência sem poder prescindir dos riscos a que nos expõe. Às vezes é difícil distinguir a causa e o efeito, o vetor e a característica do fenômeno. A grande polêmica, que aflora cotidianamente, sobre o Acordo Ortográfico, é só um exemplo da guerra intestina que se trava nas áreas que envolvem a língua. Questão de opinião? Questão de vaidade intelectual? Não, questão fundamental, porque a língua é veículo de comunicação ou de desentendimento entre os homens. Mas na área da língua portuguesa, tornou-se também terreno de luta pela defesa da tradição ou do avanço, luta por prestígio geográfico, luta comercial. O Acordo Ortográfico virou uma espécie de bode expiatório para toda sorte de desavença.
Para início de conversa, preciso esclarecer aos leitores de que lado estou: após um breve período de ceticismo, aprovei o espírito do Acordo. Falar a partir dessa posição muda tudo e é claro que receberei muitas críticas de quem defende a ortografia pré-Acordo. Também gostaria de esclarecer que respeito os tradicionalistas que alertam para a perda de consciência da etimologia da língua com a simplificação imposta pelas novas regras. Ignorar a etimologia da língua é como ignorar um pouco a nossa própria história, porque a língua que usamos está impregnada de história que vem de longe, muito além dos nossos pais e dos nossos avós.
Dito isso, é fácil constatar que a língua, independentemente de acordos, mudou muito nos últimos séculos: para muitos jovens (e talvez nem tão jovens assim) é complicado ler Camões sem um glossário. Isso ocorre porque a língua é sempre um fenômeno natural, além de ter uma gramática que tenta explicitar a dinâmica do fenômeno. Em outras palavras: a língua segue a sua evolução, enquanto a gramática corre atrás, tentando explicar com elementos racionais o que fazemos com a língua intuitivamente ou com simples e pura ignorância.
Dante Alighieri teria observado com curiosidade o debate que está acontecendo em terras lusófonas. Foi ele o autor de "De Vulgari Eloquentia", um tratado escrito em latim para explicar o que era (e defender) essa nova língua (o vulgar - no caso, o falar toscano) aprendida pelas crianças com as babás, mas com uma riqueza linguística enorme, capaz de, segundo o autor, melhor exprimir o sentimento de amor, de ódio, em condições de melhor descrever as lutas e as paixões humanas do que o latim, na sua época já muito distante do falar local. Dante fazia uma clara distinção: o vulgar era a língua falada, que ele tentava descrever e fixar, usando-o na sua obra-prima, a "Divina Comédia". A "gramática" era o latim.
Para mim, o Acordo Ortográfico representa um esforço para fixar de forma regular algumas mudanças que já se verificam no uso. Portanto, preciso reconhecer que a nova escrita de algumas palavras afasta-se ainda mais das nossas origens. Contudo, pergunto: o Acordo é culpado por registrar mudanças que já se verificam na fala? Quando falamos que há muita ignorância, que a língua é mal falada, que as pessoas desconhecem o uso correto da língua, tudo isso é resultado de muito tempo de pouca atenção ao ensino das normas gramaticais, certamente não é efeito do novo Acordo Ortográfico, que ainda não foi completamente assimilado no mercado editorial e no ensino.
É preciso ter cuidado para não mirar o alvo errado. A minha luta é combater a ignorância. Não é culpar os falantes ignorantes (porque acho que ninguém tem orgulho da própria ignorância, mas simplesmente ignora a sua condição) e não é culpar os linguistas que observam um fenômeno em evolução, registrando a sua mudança. A ignorância é o grande mal da língua e é um mal ao qual nos acostumamos demais por muito tempo. Os índices de analfabetismo funcional ainda são enormes nos países de língua portuguesa e os grandes esforços para reduzir a sua incidência entre a população verificaram-se somente no século XX. Isso significa que a maior parte dos falantes nativos, excetuando-se a elite intelectual, passou quatro séculos (e mais ainda, se pensamos no período arcaico da língua) usando uma língua sem ter a menor noção das suas regras gramaticais.
Apesar de tudo isso, os grandes escritores da língua portuguesa sempre souberam colher a riqueza da língua do seu tempo, fixando por meio de seus textos novos padrões que aos poucos foram aceitos pela gramática. Isso é um fato demonstrável justamente pela mudança de estilo e de vocabulário que pode ser constatada comparando textos de diferentes períodos. Quer dizer, na disputa entre língua e gramática (entendida como sinônimo de modelo rígido de língua), a língua impura vence...
Pronto, está dito. Com respeito, porque sei o quanto é importante preservar as nossas tradições, mas o meu caminho é outro: é observar o português falado na beira da praia, é entender o que acontece e colocar-me à disposição dos falantes que queiram falar algo mais que um português espontâneo. Minha missão é compartilhar com as pessoas esse conceito: há muitos modos de usar a língua, há formas poéticas, persuasivas, elegantes, criativas etc. Quem mais sofre quando permanecemos somente no nível da língua espontânea não é a gramática do português, mas é o próprio falante.
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