A autora adverte: ouvir sem escutar é prejudicial à boa prosa.
O bate-papo pode ser algo mais que uma conversa des(con)traída. Prestar atenção (quer dizer, ouvir escutando) significa colher detalhes na fala do interlocutor que podem ser reveladores, surpreendentes e evitar equívocos. Os psicanalistas que o digam, eles que vivem das meias-palavras alheias.
Há, contudo, um outro elemento interessante a considerar: o nosso modo de ouvir. Ouvimos o que o interlocutor diz ou o que queremos escutar? Ouvir o que já está sedimentado na nossa babagem linguística e cultural é um fenômeno que constato frequentemente ensinando língua estrangeira. Diante do desconhecido, o ouvinte tende a procurar um sentido no seu repertório pessoal, que o afasta do que realmente está sendo dito. Vem-me à mente também o esquete da velha da praça (de um antigo programa humorístico da tv brasileira), em que a senhora sempre entendia algo diferente do que lhe era dito. Quer dizer, tratando-se de línguas diferentes o fenômeno parece ser mais evidente, mas isso não significa que de modo mais sutil não ocorra quando conversamos com as pessoas no nosso idioma nativo.
O pior, nesses casos, é quando a gente cai no caso do “faça o que eu digo e não faça o que eu faço”. Dito e feito. Demonstrando que ninguém está imune e que o ouvido nos trai apesar das nossas boas intenções, segue um episódio no qual desempenhei um papel digno das piores comédias de costume.
Foi o seguinte: para o encerramento do ano, a escola do meu filho organizou uma festa, para a qual as famílias estavam convidadas a participar com um prato típico do próprio país. Claro, prepararia um prato brasileiro e perguntei à mãe de um coleguinha o que ela faria. Chinesa e casada com um egípcio, ela contou que costumava fazer pratos italianos e chineses em casa, pois o marido não fazia questão de comida árabe.
— E para a festa? – quis saber.
Disse que compraria um prato pronto. Tive que insistir para que mudasse de ideia, fazendo grandes elogios à cozinha oriental e à influência dos rolinhos primavera na criação do nosso pastel. Para minha surpresa ela se convenceu: assim que cheguei à festa veio contar que tinha preparado ravioli.
— Ravioli?
— Ravioli chinês. – E estendeu-me o prato.
Na verdade tinha dito “lavioli”, pois os chineses têm dificuldade com a pronúncia do fonema /r/. Mas o meu ouvido interpretou “ravioli” e eu acabei achando que tinha ouvido “ravioli”.
Dada a primeira bocada, digo:
— Hum, gostoso. Ravioli de quê?
— “Cane”.
Aí meu ouvido escuta “cane” e o meu cérebro traduz para o português “cachorro”. Devo ter ficado branca enquanto os meus neurônios percorriam todas as possibilidades de se preparar ravioli com carne de cachorro na Itália, onde achar o cachorro, talvez filhotes (porque o sabor era realmente muito delicado), o que fazer com as partes não comestíveis, como matar o animal em apartamento e não chamar a atenção dos vizinhos. Tentando recobrar a cor e não deixar transparecer o preconceito, como outro pedaço do ravioli ao vapor passado na chapa. Enquanto as papilas gustativas dizem “gostoso” o cérebro continua a enviar mensagem de alarme: “meu Deus, estou comendo cachorro”.
Daí pergunto com falsa naturalidade:
— “Cane”? Qual?
— “Cane” de vaca.
— Ah, carne de vaca. Ah, bom.
Engoli seco a gafe e saboreei outro ravioli.
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