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A QUEM PERTENCEM OS MORTOS?

Esta semana, duas notícias sem nenhuma ligação entre si chamaram a minha atenção.

Uma delas informava que um documentário brasileiro tinha recebido um prêmio internacional: conta a história dos últimos sobreviventes de um povo destinado à extinção. A extinção certa: é um conceito brutal. Mas é com isso que temos de lidar: com um povo que morre e leva consigo a sua cultura e a sua língua. A derrota é coletiva, todos nós perdemos quando um povo desaparece. A humanidade se revela menos humana por permitir que povos sejam dizimados.




A outra notícia referia-se a um político italiano, o qual afirmou que a política deve interessar-se pelos vivos, não pelos mortos. Discute-se na Itália a lei do testamento biológico, que prevê a possibilidade de as pessoas poderem exprimir-se sobre o fim da própria vida. A frase causou polêmica, e não apenas pelo conteúdo ético.

Trata-se, claramente, de dois problemas diferentes: em um caso, é uma cultura que se perde juntamente com os seus últimos falantes, arrastada pela nossa miséria ética, pela nossa incapacidade de proteger as pessoas. No outro caso, trata-se de uma linguagem usada para desqualificar, para rebaixar o sentido de humano em relação à morte. Como bem observou um jornalista, Massimo Gramellini, em sua coluna cotidiana no Corriere della Sera, o político usou os instrumentos da linguagem politicamente incorreta para marcar mais um ponto junto do seu eleitorado: para exprimir que talvez fosse oportuno priorizar a discussão sobre as dificuldades dos italianos com o trabalho, por exemplo, acabou por banalizar o sofrimento de famílias que convivem com doentes terminais, os quais a medicina trata no limite do conhecimento científico e de acordo com o previsto por lei. A matéria é complexa e não se limita à tentação maniqueísta de defender ou reprovar a eutanásia, mas de regulamentar tratamentos aplicáveis à fase final da vida, entre esses as curas paliativas e a sedação profunda.

Falar da morte exige uma linguagem adequada, porque a morte é parte da cultura. Os mortos são patrimônio da nossa memória. Acho que falamos pouco da morte como elemento discursivo. Falamos dos aspectos técnicos, dos aspectos filosóficos, dos aspectos religiosos. Seria interessante realizar uma gramática da morte que sistematizasse os telegramas, os epitáfios, os réquiens, os obituários, a linguagem jurídica reservada ao tema, assim como a linguagem científica. Falar dos mortos ajuda a metabolizar um tema do qual muitos têm medo, ajuda a compreender a sua complexidade. Por isso os mortos também pertencem à lingua. Por isso, e não só por isso, os mortos são importantes para os vivos.

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