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ESCRAVOS E SERVOS OU DEVOTOS E CEIFADORES?

As palavras "escravo" e "servo" estão associadas aos termos "eslavo" e "sérvio". Como elas se relacionam?
A história inicia no século V, durante o reinado de Heráclio, que substituiu o latim pelo grego e estabaleceu de fato o Império Bizantino ou Império Romano do Oriente, com capital em Constantinopla, atual Istambul. Era um período de guerras constantes com vários povos bárbaros que ocupavam todo o Império Romano e determinavam a sua decadência, especialmente na península itálica. Ao obter finalmente o controle sobre a região oriental do Império, após inúmeras batalhas, alianças estratégicas, retiradas e avanços em várias partes do território, Heráclio convocou os eslavos e os sérvios para repovoarem a região da Dalmácia, chamada à época de Grécia deserta.
A adesão à língua grega por parte dos cronistas bizantinos era um imperativo e faziam isso ainda que para tanto distorcessem as palavras originais devido à escassa familiaridade com o idioma helênico. Visto que a convocação de eslavos e sérvios não era resultado de um processo sempre amigável de alianças, mas por vezes determinado por submissão ao exército mais potente, houve espaço primeiro para um deslizamento ortográfico e em seguida para um deslocamento de sentido. Assim, "slavus" foi associado a "sclavus" e "serbus" a "servus".
Mais difícil é saber o que "eslavo" e "sérvio" significavam nas línguas originais. Segundo uma hipótese, a raiz do termo "eslavo" poderia estar relacionada com Dniepre, o rio que atravessa a Rússia, a Bielorrússia e a Ucrânia. Segundo essa hipótese, o nome do rio corresponderia a  Slovutich, como era denominado na literatura russa antiga. Daí as populações ligadas ao rio serem definidas por associação à região de origem. Outra tese afirma que a palavra "eslavo" estaria relacionada a "slovo", que significa "palavra", portanto os eslavos seriam os povos unidos pela mesma língua. Por fim, uma terceira teoria observa como muitos nomes próprios são compostos pelo elemento compositivo "slav", que evoca divindades pagãs e, portanto, o termo estaria associado ao sentido de "devoto". De todo modo, em nenhuma hipótese eslavo poderia ser um escravo. Isso se sustenta apenas por força dos equívocos linguísticos e pelos fatos históricos, como já mencionado. E quem diria que a singela palavra "tchau", transliterada do italiano "ciao" é uma corruptela do dialeto vêneto "sciao", termo usado para designar escravo, justamente porque na República de Veneza era visível a presença de escravos de origem eslava?
Já "servus" é um modo informal para saudar as pessoas em várias áreas da Europa Central, podendo sofrer algumas variações fonológicas de acordo com a língua na qual o termo é empregado. Podemos equiparar ao uso do "ciao" entre os italianos. Todavia, é controverso o significado do termo "sérvio". Ao contrário do que ocorre com "eslavo", associado a "escravo" em uma circunstância histórica específica, a história da palavra "sérvio" sofreu mais de uma sobreposição. Plínio, o Velho, no século I, menciona na sua obra uma região no atual norte da Grécia, que chamava de Fílacas. O território foi rebatizado com o nome de "Sérvia" pelos romanos, porque era uma passagem entre as montanhas que permitia o controle de quem vinha do Oriente na direção do Império. "Sérvia", neste caso estava associada à ideia de vigilância do território e teria determinado a designação da população local. No tempo de Heráclio o termo deturpado referia-se em princípio a povo de ceifadores, os que foram convocados para povoar a já mencionada "Grécia deserta", ou seja, a Dalmácia. Esta tese é plausível na medida em que os sérvios são um povo de origem eslava e o radical "serb", corresponderia ao termo "prata", material usado na fabricação de foices*. Se assim fosse, o termo "servo" obedeceria ao mesmo processo de deslizamento ortográfico e deslocamento de sentido que percebemos em relação ao uso de "escravo".

Contei toda essa história porque os sentidos das palavras transformam-se e exigem uma abordagem rigorosa do ponto de vista linguístico, sem perder de vista o seu passado, ainda que longínquo. Tendo a questionar as perspectivas que defendem uma linguagem politicamente correta, uma linguagem identitária ou o que chamam de apropriação cultural: não acredito nem no apagamento como forma de superação das discriminações, nem no reduto como forma de preservação. Prefiro voltar à história, por mais longa que seja. O tempo nos ajuda a perceber os fenômenos complexos na sua complexidade, permite que usemos os termos que quisermos, lembrando, porém, a carga cultural que carregam nos seus fonemas. Conhecer as palavras no fluxo da sua história permite que tenhamos consciência da nossa própria linguagem e exige que assumamos a responsabilidade pela língua que empregamos.

* Vale citar Olzhas Suleimenov, autor do livro Dal segno al suono, Per una preistoria del linguaggio (Do sinal ao som, por uma pré-história da linguagem - tradução livre), Roma, Sandro Teti editore, 2015, no qual a tese de que o termo sérvio refere-se a foice confirma o que se conta no período de Heráclio.

Comentários

  1. Excelente! Sou descendente de Croatas, por parte de mãe, então, esse artigo foi duplamente saboroso. Parabéns pelo texto e pelo layout do "novo" site.

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  2. Claudia, muito obrigada pelo comentário. Sempre generosa. Um abraço.

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