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TCHAU PARA VOCÊS!

"Seu escravo, vossa mercê!"
Quem diria que ao usar a expressão coloquial "tchau pra vocês!" estamos atualizando uma expressão que encerra tanta reverência, não é? Pois pasmem, é isso mesmo.
Vamos à história.
A palavra "tchau" vem do italiano, mas especificamente do dialeto vêneto ("sciao"). Não é de admirar-se, visto que temos tantos descendentes de vênetos no Brasil. Mas antes de vir do vêneto, o "sciao" (transliterado como "tchau") vem do latim "sclavus" (escravo). É um termo que pertencia à expressão: "seu escravo".
Também no português, usar essa expressão era o máximo da reverência: "José, seu escravo!". Lindo quando se trata de uma declaração de amor, abominável quando significa total submissão.
Já a palavra "vocês" tem uma história toda lusófona: trata-se de uma típica evolução caracterizada pela economia fonética, ou seja, pela simplificação ou concisão na pronúncia (o que de resto não se distingue da evolução da palavra "sciao" em vêneto ou "ciao" em italiano - ambas resultado de um processo de economia fonética, partindo do termo latim "sclavus"). Tudo começa com uma deferência reservada aos membros da aristocracia: "vossa mercê". A nossa gente analfabeta, por imposição do Estado, que não queria escravos cultos, considerando ainda que eram escravos estrangeiros que aprendiam a língua no uso cotidiano, transformou o "vossa mercê" em "vosmicê" e posteriormente transformou o"vosmicê" em "você". Hoje, por economia fonética, quase todo mundo usa "cê" no lugar de "você", especialmente na linguagem oral.
De modo que uma expressão extremamente reverencial como "Seu escravo, vossa mercê!" se transforma em uma saudação extremamente coloquial como "Tchau pra vocês!".
Essa flexibilidade, essa capacidade de adaptação da língua, é formidável. De certo modo, a língua demarca as transformações sociais: nos casos acima, revela o crepúsculo da aristocracia e do escravismo (lembrando também que os primeiros imigrantes italianos vieram substituir a mão-de-obra escrava nas lavouras brasileiras, rebelando-se contra isso após perceberem o buraco em que tinham sido colocados). Por outro lado, mostra que as transformações comportam também o esquecimento típico da sincronia. Quando usamos os termos "tchau" e "você" geralmente não nos perguntamos de onde eles vêm. Usamos e pronto.
Apesar disso, a língua sempre deixa vestígios. Isso é importante, pois permite que tomemos consciência da nossa história, que possamos dar mais peso ao que dizemos. Mesmo que o peso seja o da percepção de que ao usar termos tão comuns estamos evocando histórias sofridas, que o presente infelizmente ainda repete e que precisam ser superadas urgentemente.
Contudo, seria bom que esses termos fossem utilizados também para recordar que a rígida hierarquização do sistema escravocrata não deve pautar o diálogo em sociedades pretensamente democráticas como as nossas. Não sei quando isso será de domínio comum. Mas aqui vai uma semente que compartilho com vossas mercês!

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