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CARA DE QUÊ?

"Aí, cara, como vai?"

"Cara" nem sempre é o feminino de "caro" e sinônimo de "querido". "Cara" pode ser um nome genérico para indicar "pessoa", "amigo", "fulano". E, com muita frequência, "cara" é masculino.

"Cara, você, sim, que é meu amigo!"
"Você é o cara!"
"Vi um cara estranho na rua."

O Aurélio explica que "cara" vem do grego "kara", "cabeça". Os latinos usavam "caput" para indicar a extremidade do corpo: portanto, é claro que esse termo também deu origem a várias palavras em português.

Vamos ver como evoluiu o nosso léxico, a partir de "caput" e "kara"?

Palavras originadas de "caput"

Cabeça - para entender como passamos de "caput" a "cabeça", primeiramente é preciso lembrar que as consoantes "p" e "b" alternam-se com frequência, porque são pronunciadas no mesmo ponto de articulação (são bilabiais). A diferença é que o "p" é mudo e o "b" é sonoro. Quanto ao "ç", em latim o "t" era pronunciado mais ou menos como "c" quando aparecia em um ditongo (ex. "letitia", em português "letícia", ou seja, alegria). Pois é, mas em "caput" não tem ditongo. Eu sei. A questão é que o latim nem sempre era falado nas províncias, na Hispânia, por exemplo, como era falado em Roma. Ao longo do processo de transformação que resultou nas línguas neolatinas, "caput" (cujo genitivo, ou seja, uma das declinações da palavra, é "capitis") virou "capitia" no latim vulgar usado na Pensínsula Ibérica. Agora se explica, né?

Acabar - Significa levar a cabo (para o significado de "cabo", leia abaixo), ou seja, terminar, encerrar.
Cabo - A cabeça é a extremidade do corpo, o cabo é a extremidade da terra. Ou é a extremidade de uma corporação. Ou é um fim. O nosso gosto pelas figuras de linguagem é ancestral.
Cadete - Essa aqui passa antes pelo francês "capdet". Nós eliminamos o "p" da raiz "cap" por economia fonética. Trata-se de um processo típico do português. Aliás, o princípio da economia fonética gerou uma série de desavenças com a aprovação do novo acordo ortográfico. Há quem pense que a perda do "c" mudo em palavras como "actividade" possa empobrecer a língua. Será? "Cadete" está aí, mostrando que apesar da distância, o fator decisivo para compreender a evolução da língua é percorrer a história das palavras, a fonética é um fator acessório que nos ajuda a entender as transformações, mas não explica tudo na etimologia.
Capa - Peça do vestuário para cobrir o corpo, inclusive a cabeça.
Capataz - Como cabo, refere-se a chefia, especificamente de trabalhadores braçais.
Capital - referente à cabeça como algo principal, essencial, fundamental. Na economia, inicialmente, designava a parte principal da dívida. Também usado em expressões como "pena capital", entendida como pena de morte.
Capitão - Outro tipo de chefia militar. A desinência -ão leva a intuir (mesmo sem conhecimentos da hierarquia militar) que se trata de um grau superior ao do cabo.
Capítulo - Vem do diminutivo de "caput" ("capitulum") e designa as várias partes de um texto.
Capota - "Capota" e "capote" passaram pelo italiano "cappa" (capa), antes de chegar ao francês e ao português. Em "capota" o sentido é deslocado para indicar a cobertura de um automóvel.
Capotagem -  É o que ocorre quando um automóvel capota, ou seja, acaba com as rodas no ar e a capota no chão. (E para explicar isso, usei três palavras originadas de "caput").
Capote - Passando por "cappa" em italiano, designa a peça pesada do vestuário para enfrentar os rigores do inverno.
Capricho - É uma palavra composta por "cap" (cabeça) e "riccio" (arrepiado, eriçado). Com o tempo, o termo adquiriu o sentido que possui hoje, de reação impulsiva, repentina, um desejo inexplicável. Na arquitetura, indica um adorno rebuscado, daí no uso prosaico também usarmos a palavra "caprichoso" no sentido positivo, referida a pessoa cuidadosa e perfeccionista.
Capuchinho - É um capuz pequenho, que acabou designando o típico café com leite dos italianos devido à cor bege que recorda as vestes dos frades capuchinhos. Aliás, eles são capuchinhos porque as suas vestes possuem capuz.
Capuz - Talvez seja o termo que mais conservou a sua proximidade com o termo "caput", embora deslocado no sentido. Para entender o "z" final, pode ser útil a explicação dada para o termo "cabeça".
Caudilho - A palavra vem do termo "capitellum" (pequena cabeça), empregada no latim vulgar. Acredito que o sentido negativo da palavra afunda as raízes no diminutivo do qual se origina, e no sentido de diminutivo que conserva ainda hoje.
Decapitar - Cortar a cabeça. Dispensa explicações.
Escapar - O termo também está relacionado a "capa". Significa sair (prefixo es-, ex-) de forma encoberta (por uma capa ou capuz). O verbo "escapulir" acentua o sentido de escapar e possui evolui da mesma raiz.
Precipitar - O monte Capitólio, que não por acaso tem esse nome, era a sede do governo na Antiga Roma e é sede do governo da moderna cidade de Roma. Conta-se que, quando os sabinos tentaram atacar Roma, foram ajudados por uma romana. A sua traição teve um custo muito alto: ela foi "lançada de cabeça", ou seja, precipitou do alto de uma rocha nas proximidades do Capitólio, que acabou conhecida pelo seu nome, a Rocha Tarpeia. A morte por "precipitação" passou a ser usada em Roma para condenar malfeitores. Ser "precipitado", embora não tenha um sentido tão negativo, também significa lançar-se sem medir as consequências (que às vezes podem ser graves).

Palavras originadas de "kara"

Cara - A feição, o rosto.

Cérebro - Geralmente, os nossos dicionários informam que "cérebro" origina-se do latim "cerebrum". Mas no latim arcaico havia o termo "carabrum" que provavelmente origina-se do grego "kara".

Ao contrário de "caput", que deu origem a muitas palavras (as citadas acima são apenas alguns exemplos), o termo "kara" ficou circunscrito a termos especializados. Contudo, é interessante notar como a palavra "cara" é muito empregada no registro coloquial, em expressões com enorme variedade de sentidos.

Cara a cara - estar diante de uma pessoa.

Cara amarrada - estar de mau humor.

Cara de enterro - mostrar feição contrariada ou triste.

Cara de quem comeu e não gostou - feição irritada.

Cara de réu - revela que a pessoa está sob suspeita, pressão ou acusação.

Cara de tacho - fisionomia própria de quem está desapontado, de quem fica sem saber que fazer.

Com a cara no chão - em situação penosa, ou vexatória, como a de quem prometeu e não pôde cumprir.

Dar as caras - Comparecer em um compromisso.

Dar de cara com - encontrar-se casualmente em presença de alguém ou de alguma coisa.

De cara cheia - estar bêbedo, embriagado.

De cara limpa - estar sóbrio.

Desmanchar a cara - fazer as pazes.

Enfiar a cara no mundo - fugir.

Entrar com a cara e a coragem - enfrentar um problema.

Estar na cara - usa-se para uma situação evidente.

Ir com a cara de - nutrir simpatia por alguém ou gostar de alguma coisa.

Livrar a cara - Salvar a reputação em uma situação embaraçosa.

Livrar a cara de - tirar alguém de situação embaraçosa; defender.

Quebrar a cara - fracassar em um projeto.

Ser a cara de - parecer-se muito com alguém.




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