Leio frequentemente desabafos de quem vê horrores ortográficos e associa às dificuldades linguísticas os sintomas de intrínsecas dificuldades profissionais: "se não sabe nem escrever, imagina que tipo de profissional pode ser", coisas assim. Isso porque é por meio da língua que comunicamos as nossas competências: e se não comunicamos bem, parece que não sabemos bem. Não é por acaso que a língua tem um peso considerável em concursos, independentemente da área para a qual o candidato propõe-se.
Realmente, a língua é fundamental. Mas não é uma simples alavanca profissional, não é um simples meio. A língua é o nosso canal de contato com o mundo exterior: através da língua afirmamos quem somos (inclusive com nossos erros e limitações) e onde estamos na sociedade. O nosso sotaque individual é único, chama-se idioleto: o timbre, a cadência, a entoação, o ritmo que caracterizam a nossa voz são inconfundíveis. O estilo que usamos na escrita nos caracteriza, torna-se uma marca pessoal. A língua que usamos é parte da nossa identidade pessoal e social.
Dito isso, como é possível que haja tanto fracasso no estudo da língua?
Na minha opinião, o primeiro erro está em considerar o estudo da língua como parte da aprendizagem. Não é preciso aprender o que já temos, é preciso reconhecer, valorizar e explorar o potencial que a língua nos oferece.
O segundo erro é considerar o ensino das regras gramaticais como objetivo do ensino da norma padrão. A norma padrão é um tipo de registro linguístico, compartilhado e aceito socialmente, que não usa apenas a baliza das regras previstas na gramática normativa. A língua, sendo um fenômeno sujeito a mudanças por influência de eventos históricos e sociais, transforma-se continuamente. As novidades tecnológicas, por exemplo, não esperam o aval da gramática para existirem no universo da língua. Nem por isso, o uso de neologismos ligados à tecnologia são considerados erros de gramática.
O terceiro erro está em separar a língua das experiências que a realidade oferece. É preciso avaliar criticamente onde está a gramática nos registros coloquiais e nos registros formais. Sempre há uma gramática, ou seja, uma lógica que torna um discurso compreensível. O problema é que nem todas as lógicas são socialmente aceitas, nem todas podem ser acolhidas pela gramática normativa.
Outro problema é que diante dos nossos esforços para valorizar a língua e a gramática normativa, os alunos têm à disposição um mundo cheio de sujeitos prontos a desmentir a importância do estudo: os famosos que não sabem juntar lê-com-crê, os políticos que não conseguem explicitar um conceito de forma coerente e clara, os jornalistas que escrevem mal, os médicos que têm péssima caligrafia...
O problema é evidente e os jovens sabem bem como deixar um professor de saia justa. E o que fazemos? Continuamos a ficar horrorizados com erros ortográficos do padeiro, do pequeno comerciante? Continuamos a compartilhar os erros de quem vende "sebolas" alheio aos conselhos dos bons gramáticos?
Esta semana também li um artigo interessantíssimo sobre o significado do termo "abusada" no português hoje. Era uma tentativa de explicar o uso da palavra para um estrangeiro. Pois é, a palavra "abusada" tem adquirido nuances novas, porque sujeita a eventos históricos e sociais. As empregadas domésticas conquistaram um novo estatuto e a palavra "abusada" revela o modo como estamos lidando com essa nova situação.
É isso: é a língua seguindo o seu curso sem esperar pela autorização da gramática. A língua não tem culpa se o verdureiro vende "sebola" ou se a patroa acha a empregada muito "abusada". Não adianta ficar horrorizado. Não adianta abusar da língua para falar de temas sociais: isso se chama instrumentalização. E não resolve o problema. É preciso fazer o contrário: falar de temas sociais e mostrar que as aberrações gramaticais são sintoma de aberrações sociais. "Sebola" não é apenas sintoma de que o aluno foi mal alfabetizado, mas de que existe um código não compartilhado por todos os falantes, há uma separação de classes que coloca o vendedor de "sebola" na base e coloca os demais falantes em um patamar superior. Quem ganha com essa ignorância? E o que se ganha com isso?
Talvez seja preciso partir da realidade para chegar à excelência gramatical. O percurso em sentido contrário parece-me cada vez mais um caminho destinado ao fracasso. Das aulas e dos alunos.
Realmente, a língua é fundamental. Mas não é uma simples alavanca profissional, não é um simples meio. A língua é o nosso canal de contato com o mundo exterior: através da língua afirmamos quem somos (inclusive com nossos erros e limitações) e onde estamos na sociedade. O nosso sotaque individual é único, chama-se idioleto: o timbre, a cadência, a entoação, o ritmo que caracterizam a nossa voz são inconfundíveis. O estilo que usamos na escrita nos caracteriza, torna-se uma marca pessoal. A língua que usamos é parte da nossa identidade pessoal e social.
Dito isso, como é possível que haja tanto fracasso no estudo da língua?
Na minha opinião, o primeiro erro está em considerar o estudo da língua como parte da aprendizagem. Não é preciso aprender o que já temos, é preciso reconhecer, valorizar e explorar o potencial que a língua nos oferece.
O segundo erro é considerar o ensino das regras gramaticais como objetivo do ensino da norma padrão. A norma padrão é um tipo de registro linguístico, compartilhado e aceito socialmente, que não usa apenas a baliza das regras previstas na gramática normativa. A língua, sendo um fenômeno sujeito a mudanças por influência de eventos históricos e sociais, transforma-se continuamente. As novidades tecnológicas, por exemplo, não esperam o aval da gramática para existirem no universo da língua. Nem por isso, o uso de neologismos ligados à tecnologia são considerados erros de gramática.
O terceiro erro está em separar a língua das experiências que a realidade oferece. É preciso avaliar criticamente onde está a gramática nos registros coloquiais e nos registros formais. Sempre há uma gramática, ou seja, uma lógica que torna um discurso compreensível. O problema é que nem todas as lógicas são socialmente aceitas, nem todas podem ser acolhidas pela gramática normativa.
Outro problema é que diante dos nossos esforços para valorizar a língua e a gramática normativa, os alunos têm à disposição um mundo cheio de sujeitos prontos a desmentir a importância do estudo: os famosos que não sabem juntar lê-com-crê, os políticos que não conseguem explicitar um conceito de forma coerente e clara, os jornalistas que escrevem mal, os médicos que têm péssima caligrafia...
O problema é evidente e os jovens sabem bem como deixar um professor de saia justa. E o que fazemos? Continuamos a ficar horrorizados com erros ortográficos do padeiro, do pequeno comerciante? Continuamos a compartilhar os erros de quem vende "sebolas" alheio aos conselhos dos bons gramáticos?
Esta semana também li um artigo interessantíssimo sobre o significado do termo "abusada" no português hoje. Era uma tentativa de explicar o uso da palavra para um estrangeiro. Pois é, a palavra "abusada" tem adquirido nuances novas, porque sujeita a eventos históricos e sociais. As empregadas domésticas conquistaram um novo estatuto e a palavra "abusada" revela o modo como estamos lidando com essa nova situação.
É isso: é a língua seguindo o seu curso sem esperar pela autorização da gramática. A língua não tem culpa se o verdureiro vende "sebola" ou se a patroa acha a empregada muito "abusada". Não adianta ficar horrorizado. Não adianta abusar da língua para falar de temas sociais: isso se chama instrumentalização. E não resolve o problema. É preciso fazer o contrário: falar de temas sociais e mostrar que as aberrações gramaticais são sintoma de aberrações sociais. "Sebola" não é apenas sintoma de que o aluno foi mal alfabetizado, mas de que existe um código não compartilhado por todos os falantes, há uma separação de classes que coloca o vendedor de "sebola" na base e coloca os demais falantes em um patamar superior. Quem ganha com essa ignorância? E o que se ganha com isso?
Talvez seja preciso partir da realidade para chegar à excelência gramatical. O percurso em sentido contrário parece-me cada vez mais um caminho destinado ao fracasso. Das aulas e dos alunos.
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