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POR QUE OS ESCRITORES DEVEM SER CONTRA A REFORMA ORTOGRÁFICA?

A gente pode concordar ou discordar do acordo, o importante é que os escritores têm que estar contra!
Por quê?
Porque escritor não tem compromisso com a gramática. Tem compromisso com a língua. A língua portuguesa durante muitos séculos sobreviveu sem nenhuma gramática normativa, e a gramática sobreviveu até o fim do século XIX sem nenhuma regra sobre uso de hífens. Mas as línguas vivem e se enriquecem graças aos seus falantes... e aos seus escritores. A diferença é que os comuns mortais falantes estão sujeitos às agruras dos decretos, os escritores têm o dever de não se submeterem a uma norma única.

ESCRITOR NÃO TEM COMPROMISSO COM A GRAMÁTICA
Não peça para um escritor obedecer às regras da gramática normativa. A representação literária do mundo exige a utilização de vários registros linguísticos. Ao utilizar apenas o padrão culto, o escritor estará falhando com o princípio de verossimilhança. O texto ficará artificial, perderá a sua literariedade. Será um texto banal, que em nada se difere do registro jornalístico (no melhor dos casos).
ESCRITOR TEM COMPROMISSO COM A LÍNGUA
Ao afinar o ouvido e buscar representar literariamente a realidade, o escritor valoriza as formas vivas da língua, mesmo que se trate de registros ainda não aceitos pela norma culta. O escritor pode ir além, e criar uma língua própria, por meio de neologismos ou de uma sintaxe especial - como fizeram Guimarães Rosa e José Saramago. Assim, eles não apenas registram a língua corrente, mas revigoram o idioma, introduzindo novos termos e novas formas de expressão, que desafiam os padrões reconhecidos, mas podem acabar sendo aceitos gramaticalmente.
A LÍNGUA PODE SOBREVIVER SEM GRAMÁTICA
A língua é um fato natural. Não depende de gramáticas normativas para existir e autorregulamentar-se. Fato evidente é que as crianças aprendem de forma competente as suas línguas maternas nos primeiros anos de vida, bem antes de irem para a escola.
A GRAMÁTICA PODE SOBREVIVER SEM ESCRITORES
A gramática vive muito bem sem os escritores (e sem os falantes) da língua. Sem eles, nenhuma regra é violada, nada muda ao longo do tempo, nenhum acordo precisa ser retocado. Tudo funciona como em um sistema numérico, cada algarismo perfeitamente no seu lugar. Só que geralmente esse tipo de língua é morta ou artificial. É o caso do latim, que ainda hoje é usado na escrita, mas sem inovações possíveis, salvo algum caso de neologismo, e do esperanto, que nasce primeiro como sistema e depois como língua de comunicação (geralmente uma segunda língua para os falantes em relação à sua língua materna).
ESCRITORES NÃO PODEM SOBREVIVER SEM A LÍNGUA
Refiro-me aos escritores corajosos. Dante Alighieri, por exemplo, ousou escrever em "vulgar" (ou seja, a língua utilizada pelos italianos na Idade Média) e até defendeu isso em um livro, numa época em que todo grande escritor usava o latim. Dessa forma, ele estabeleceu de modo definitivo o padrão da língua italiana. Camões cristalizou o português em um período importantíssimo, em que a língua portuguesa estava em plena expansão em vários continentes. Não por acaso, o português do Brasil conserva elementos arcaicos, que perpetuamos, especialmente na língua falada, como um tesouro às vezes ignorado e até depreciado pela atual norma padrão.
Quando o texto de um escritor corajoso funciona, estamos diante da obra de arte. Arte, que etimologicamente possui um percurso longo e complicado, mas é um termo ligado ao fazer, ao criar. Nunca é mera reprodução. Nunca é obediência cega a um padrão, por mais que algumas artes e alguns períodos tenham normas rígidas de realização e de composição.

É óbvio que os escritores devem contestar o acordo ortográfico. Devem criticá-lo constantemente e devem ir além dele. Devem saber captar as linguagens das ruas, das academias, dos salões, dos campos e devem saber transformá-las em material fecundo para que a língua se enriqueça. Mas se não fizerem isso com espírito de provocação e de inovação - que nada tem a ver com as novidades regulamentadoras do acordo -, bem, se não fizerem desse modo, mas por acomodação aos velhos hábitos, à escrita interiorizada, que não requer pesquisa, esforço, recriação contínua... Bem, nesse caso, convém não levar muito a sério a opinião do escritor. Não é preciso. É mais útil voltar às regras do acordo ortográfico, esquecer o escritor e esquecer também este texto aqui.

O acordo ortográfico é uma segurança para quem precisa usar a norma culta. Para quem é escritor, o acordo deve ser uma pedra no sapato. E o que seria dos escritores sem as pedras?

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