Frase feita: "uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa".
Coisa boba, não é? Mas a frase é eficaz, porque a repetição da palavra "coisa" inevitavelmente "fere os ouvidos", e ferindo chama a atenção, e chamando a atenção favorece a memorização.
Agora imagine que a pessoa não esteja usando uma sentença com esse tipo de estrutura para criar uma tirada ou fazer uma ironia.
Digamos que ela queira chamar a sua atenção: "não confunda alhos com bugalhos!"
Aqui também é a fonética a fazer o papel de elemento catalizador da atenção, criando assonância. Efeito garantido.
Vejamos outros exemplos:
"Quem com ferro fere, com ferro será ferido".
Usa a repetição e a assonância para reforçar o conceito que as palavras exprimem.
Ou ainda:
"Quem pode, pode; quem não pode se sacode".
Aqui temos novamente a repetição e a assonância. Mas convenhamos: a mensagem é péssima, embora seja tão hipnótica, que acabamos fixando na memória, mesmo discordando dela.
Até os estrangeirismos cristalizam-se e ecoam nos ouvidos graças não apenas à erudição, mas à fonética. Podemos citar: "dura lex, sed lex" (a lei é dura, mas é a lei) ou mesmo as traduções, que buscam recriar um efeito sonoro equivalente, como em "ser ou não ser, eis a questão", que está para "to be or not to be? That is the question".
Que tal buscar inspiração carnavalesca? "Você pensa que cachaça é água, cachaça não é água, não / cachaça vem do alambique e água vem do ribeirão".
É o folião brincando com as funcionalidades da língua.
É a língua mostrando que não faz distinção de contexto, a fonética funciona do erudito ao popular.
Parece tudo ótimo, mas a língua é amoral. E isso muda toda a história, pois com a fonética criamos jogos de palavras, mas também podemos cair na retórica mais infame, podemos sustentar mentiras ou criar curtos-circuitos concentuais. Isso não é culpa da língua. As facas existem para cortar os alimentos, mas se alguém acaba esfaqueado a culpa não é do instrumento, é de quem o utilizou com fins espúrios.
Para ficar na atualidade e desmascarar coisas que às vezes parecem óbvias, mas escondem o nosso mais genuíno instinto de nacionalidade, cito um exemplo que encontrei nas redes sociais.
Um manifestante, protestando contra a situação brasileira, expôs um cartaz com a frase:
"Sonegação não é corrupção".
A frase é ótima: usa assonância que reforça o conceito que o autor quer transmitir. De fato, sonegação e corrupção são dois tipos diferentes de violação do sistema erário. No caso da sonegação, o sujeito deixa de pagar um tributo, usufruindo sozinho dos recursos que deveriam ser recolhidos e empregados para o bem comum. Já no caso da corrupção, o sujeito está disposto a gastar dinheiro do seu bolso para dar uma propina a um funcionário inescrupuloso com a promessa (geralmente cumprida) de uma vantagem para o sujeito de forma exclusiva e discriminatória em relação aos demais cidadãos. Na sonegação, a vantagem da violação tem efeito imediato. Na corrupção, só existe vantagem se a propina é inferior à vantagem recebida.
Pena que o manifestante, no seu intuito moralizador, não explicou tudo nos mínimos detalhes.
Como dizia, a língua é como uma faca: pode ser usada para cortar o bife ou para esfaquear um desafeto. Se a pessoa explica tudo direitinho, ela está cortando o bife; se permite que um leitor qualquer interprete o seu cartaz como uma simples oposição, na qual o primeiro elemento é positivo e o segundo é negativo, e que, portanto, confere à sonegação um significado que abona e aprova o seu sentido desprezível, está violando deliberadamente a comunicação, está criando confusão, desviando o olhar do leitor para esconder os defeitos da mensagem que propõe.
É por isso que o título do texto de hoje se chama "Adereços, bibelôs e badulaques": porque quando usamos adereços, geralmente estamos querendo esconder um "defeito", ou valorizar algo que gostamos em nós mesmos. O mesmo vale para os badulaques vários. Ou ainda para os bibelôs, que, aliás, geralmente servem só para acumular pó. Não quero crucificar a beleza dos acessórios e dos enfeites para casa, mas nessa matéria eu defendo a parcimônia. Menos é mais. Deixa tudo mais bonito, mais limpo, mais transparente. Na língua acontece o mesmo: uma assonância excessiva, um adjetivo mal usado, um advérbio na hora errada, é o suficiente para estragar a festa. Ou o protesto. É o suficiente para transformar uma reclamação justa em uma declaração do mais genuíno e cínico instinto de nacionalidade que faz a nossa vergonha pelas ruas.
Coisa boba, não é? Mas a frase é eficaz, porque a repetição da palavra "coisa" inevitavelmente "fere os ouvidos", e ferindo chama a atenção, e chamando a atenção favorece a memorização.
Agora imagine que a pessoa não esteja usando uma sentença com esse tipo de estrutura para criar uma tirada ou fazer uma ironia.
Digamos que ela queira chamar a sua atenção: "não confunda alhos com bugalhos!"
Aqui também é a fonética a fazer o papel de elemento catalizador da atenção, criando assonância. Efeito garantido.
Vejamos outros exemplos:
"Quem com ferro fere, com ferro será ferido".
Usa a repetição e a assonância para reforçar o conceito que as palavras exprimem.
Ou ainda:
"Quem pode, pode; quem não pode se sacode".
Aqui temos novamente a repetição e a assonância. Mas convenhamos: a mensagem é péssima, embora seja tão hipnótica, que acabamos fixando na memória, mesmo discordando dela.
Até os estrangeirismos cristalizam-se e ecoam nos ouvidos graças não apenas à erudição, mas à fonética. Podemos citar: "dura lex, sed lex" (a lei é dura, mas é a lei) ou mesmo as traduções, que buscam recriar um efeito sonoro equivalente, como em "ser ou não ser, eis a questão", que está para "to be or not to be? That is the question".
Que tal buscar inspiração carnavalesca? "Você pensa que cachaça é água, cachaça não é água, não / cachaça vem do alambique e água vem do ribeirão".
É o folião brincando com as funcionalidades da língua.
É a língua mostrando que não faz distinção de contexto, a fonética funciona do erudito ao popular.
Parece tudo ótimo, mas a língua é amoral. E isso muda toda a história, pois com a fonética criamos jogos de palavras, mas também podemos cair na retórica mais infame, podemos sustentar mentiras ou criar curtos-circuitos concentuais. Isso não é culpa da língua. As facas existem para cortar os alimentos, mas se alguém acaba esfaqueado a culpa não é do instrumento, é de quem o utilizou com fins espúrios.
Para ficar na atualidade e desmascarar coisas que às vezes parecem óbvias, mas escondem o nosso mais genuíno instinto de nacionalidade, cito um exemplo que encontrei nas redes sociais.
Um manifestante, protestando contra a situação brasileira, expôs um cartaz com a frase:
"Sonegação não é corrupção".
A frase é ótima: usa assonância que reforça o conceito que o autor quer transmitir. De fato, sonegação e corrupção são dois tipos diferentes de violação do sistema erário. No caso da sonegação, o sujeito deixa de pagar um tributo, usufruindo sozinho dos recursos que deveriam ser recolhidos e empregados para o bem comum. Já no caso da corrupção, o sujeito está disposto a gastar dinheiro do seu bolso para dar uma propina a um funcionário inescrupuloso com a promessa (geralmente cumprida) de uma vantagem para o sujeito de forma exclusiva e discriminatória em relação aos demais cidadãos. Na sonegação, a vantagem da violação tem efeito imediato. Na corrupção, só existe vantagem se a propina é inferior à vantagem recebida.
Pena que o manifestante, no seu intuito moralizador, não explicou tudo nos mínimos detalhes.
Como dizia, a língua é como uma faca: pode ser usada para cortar o bife ou para esfaquear um desafeto. Se a pessoa explica tudo direitinho, ela está cortando o bife; se permite que um leitor qualquer interprete o seu cartaz como uma simples oposição, na qual o primeiro elemento é positivo e o segundo é negativo, e que, portanto, confere à sonegação um significado que abona e aprova o seu sentido desprezível, está violando deliberadamente a comunicação, está criando confusão, desviando o olhar do leitor para esconder os defeitos da mensagem que propõe.
É por isso que o título do texto de hoje se chama "Adereços, bibelôs e badulaques": porque quando usamos adereços, geralmente estamos querendo esconder um "defeito", ou valorizar algo que gostamos em nós mesmos. O mesmo vale para os badulaques vários. Ou ainda para os bibelôs, que, aliás, geralmente servem só para acumular pó. Não quero crucificar a beleza dos acessórios e dos enfeites para casa, mas nessa matéria eu defendo a parcimônia. Menos é mais. Deixa tudo mais bonito, mais limpo, mais transparente. Na língua acontece o mesmo: uma assonância excessiva, um adjetivo mal usado, um advérbio na hora errada, é o suficiente para estragar a festa. Ou o protesto. É o suficiente para transformar uma reclamação justa em uma declaração do mais genuíno e cínico instinto de nacionalidade que faz a nossa vergonha pelas ruas.
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