Pular para o conteúdo principal

QUEM NÃO ODEIA A LITERATURA NÃO AMA ENSINAR

Fiquei surpresa por não ter recebido nenhum comentário provocatório quando escrevi no início do mês que a literatura é um amor superior (http://palavrasdebulhadas.blogspot.it/2014/02/a-angustia-da-filiacao.html). Todo mundo quietinho, ninguém para levantar polêmica e dizer: afinal, não era você que destratava o beletrismo? Que história é essa agora de "amor superior"? Pois é. A literatura é um amor superior, é aquele mistério que nunca se revela completamente, que alimenta a curiosidade pela vida afora. Mas a língua, como sempre repito, foi o meu primeiro amor, amor pleno, amor cheio de cumplicidade, amor (quase) sem segredos, amor familiar, amor que de tão visto nos cega, está ali o tempo todo como abajur em precioso silêncio, acompanhando as noites sem sono. Tudo isso é verdade para mim. E justamente nisso está o grande perigo. Vou explicar, porque já aconteceu um monte de vezes comigo.
Você está louca para falar de um livro maravilhoso com um amigo e ele diz: "ah, Gislaine, você é muito papo-cabeça..." Isso, sim, que é amigo. Porque começou com essa premissa e depois explicou que nessa estrada eu ia ficar para tia, eu e o meu livro, enfiadinhos no sofá. E ele tinha razão. Só não fiquei para tia porque encontrei outro como eu, que já tinha se resignado a viver de poesia. Daí acreditei que era amor mesmo.
Outro exemplo? Você entra na sala de aula, super empolgada com aquelas frases sublimes do livro que vai debater com a turma. Cruza com o olhar dos alunos e descobre um certo ar de perplexidade, de dúvida em relação à sua sanidade mental... Sabe que nos corredores eles comentam entre risinhos que a professora vive em outro mundo, que ela é surreal. E os alunos continuam soltos, felizes naquela ignorância de achar que a literatura não serve para nada.
Não serve mesmo.
Acho que todos os professores deveriam começar as suas aulas afirmando categoricamente: LITERATURA NÃO SERVE PARA NADA!
Fim da aula. Mas não sem antes pedir que eles digam o que pensam. Sem descobrir com eles por que a literatura é tão inútil.


A grande sacada é que a literatura é uma das últimas trincheiras da inutilidade em um mundo de utilidades e de objetos descartáveis. Literatura é uma rebeldia contra o sistema utilitarista e consumista em que vivemos.
A literatura também é guardiã dos nossos melhores pensamentos, das visões de mundo que retrataram magistralmente um período ou que foram capazes de antecipar o futuro. Mas isso já é o fim da história. Antes é preciso explicar que nem toda literatura merece o nome que tem. Haja paciência! É preciso separar o joio do trigo! Mas como posso explicar para os alunos que, com todo respeito pelos milhões de cópias vendidas, o Paulo Coelho nunca irá mudar a minha vida, nem fazer a minha iniciação no mundo da felicidade? Para mostrar isso é preciso esquartejar o texto dele, chorar à margem de um rio (sic, texto) descobrindo quantos célebres ecos estão por baixo daquele seu mar de palavras. Como posso iniciar meus alunos na literatura, se não tiver aquele sentimento de empatia, de ódio pelo texto que me faz perder tempo, que faz a inutilidade sublime da literatura se transformar em inutilidade redundante?
Além do mais, o ódio torna o professor um sujeito mais respeitável. Se a gente ama incondicionalmente, cegamente, sem ver a razão do outro, sem prestar atenção nos seus motivos, ou somos chamados de sectaristas, ou os alunos passam a fazer ouvido de mercador. E dizem com seus botões: "com ela é inútil discutir". O professor que cultiva um pouquinho de ódio, até pelos clássicos, vá lá, que nem todo soneto de Vinícius é uma obra-prima, esse professor abre uma porta para a discussão, mas também faz o aluno abrir o ouvido. Isso se chama didática. É uma coisa nobre, porque tem que ser feita com sinceridade, destronando os mestres das Letras quando eles por seus próprios dedos tiverem descido ao Hades da crítica. E visto que ninguém é perfeito, há muito a ser criticado e muito a ser salvo no nosso Panteão. O que não vale é ser monolítico. Do tipo: tudo ou nada. Não vale fazer truques, não vale dizer mentiras para os alunos.
Quando chegar a esse ponto de cumplicidade, daí dá para continuar o fim da história. E dá para dizer para os estudantes que a literatura, na sua inutilidade, salva, porque é uma inutilidade produtiva, que nos coloca cara a cara com a condição humana, com as emoções, ativa um mecanismo de reflexão que exige o nosso posicionamento. A literatura sozinha é um mestre.
Eu sei que se contarmos esse segredo para todo mundo, haverá professores com medo de perder a sua função. Paciência. A gente vai inventar outra profissão. Reabilitar o papel da crítica, por exemplo, que anda tão massacrada por seu aspecto comercial...

Comentários

Postagens mais populares

A GUERRA SANTA DA LETRA CURSIVA