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A ANGÚSTIA DA FILIAÇÃO

Primeiro texto do mês e eu aqui às voltas com a literatura:
Quando ingressei no curso de Letras, depois de alguns meses, recebi duas oportunidades: participar do projeto de descrição da língua portuguesa ou ser monitor do curso de teoria literária. Expliquei, muito agradecida, à professora de língua portuguesa que adorava a língua, mas o meu problema era entender a literatura.
Na época, havia essa dicotomia, entre os que idolatravam a linguística e colocavam a literatura num patamar inferior, dedicado às belles-lettres, e os que acreditavam no sistema literário. Não faltavam professores de literatura que com arrogância machista diziam que as moças de boa família inscreviam-se no curso para complementar os cursos de bordado e piano. E as professoras que nos diziam que os alunos de literatura trabalhavam só para pagar "os seus alfinetes". Tudo isso era Letras, mas não era o meu caso, que tinha feito a matrícula para entender como funciona essa tal literatura.
Para espanto dos meus caros colegas e amigos linguistas, que colocavam a língua em um lugar de absoluto interesse, eu costumava repetir que ninguém pode amar a literatura se não tiver um profundo amor pela língua. A língua precisa ser o primeiro amor. A literatura é um amor superior.
Para muitos linguistas, os debates críticos envolvendo a literatura pareciam incompreensíveis, regidos por códigos que resistem à sistematização científica. É simples, a literatura presta contas à história. História essa que subjaz à língua e que, salvo raras exceções, já deu todos os melhores exemplos de uso da língua, nas suas mais diferentes funções (em relação a isso, li anos atrás um livro muito bem humorado, "Jesus lava mais branco" - uma paródia de um comercial de sabão italiano - para explicar todas as estratégias de convencimento e fidelização que podem ser assimiladas aos textos evangélicos. Este o link para o texto em português: http://www.livrariacultura.com.br/scripts/resenha/resenha.asp?nitem=22424070).
Esse é o ponto: prestar contas à História. A literatura carrega esse fardo consigo. Um fardo remexido cada vez que uma nova obra é comentada, ou pior, é colocada por grande parte da crítica no cânone. Cada vez que uma obra considerada merecedora é comentada pela crítica, começa a gincana das filiações, para entender de onde vem, a quem se refere, o que terá a dizer ao futuro. Uma operação extremamente laboriosa, dependente da erudição de quem lê, do compromisso do crítico com os leitores de hoje e do porvir. Trata-se de um trabalho delicado, que exige conhecimento e respeito pelos textos postos em relação.
Nunca se trata de trabalho fútil, porque os linguistas sabem bem que a comunicação, da qual a literatura é mestra, é a base das relações humanas. A questão é que há muito preconceito: críticos, eruditos e intelectuais são vistos na melhor da hipóteses como potenciais professores para cumprir os programas obrigatórios, gente de pouca serventia prática, quando não perigosa. Que se pense assim. Isso me dá tempo para desperdiçar com a minha angústia, compartilhada por muitos dos meus pares, de encontrar os laços certos a desatar, de dar sentido às possíveis filiações literárias, de mostrar que a nossa história é um novelo de lã, contínuo, que se embaraça, amarra-se e solta-se, retorna sobre a sua trajetória, mas nunca traça o mesmo caminho.

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