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JORNALISMO NA TORCIDA

Ontem, lendo várias notícias sobre o mesmo assunto e vários textos jornalísticos apresentando a mesma linha política, experimentei a sensação de estar ouvindo o coro de uma torcida organizada.
É o melhor! Caiu! Despencou!
Eram os artigos comentando a lista anual de liberdade econômica da Fundação Heritage.

Só encontrei uma voz dissonante, vou falar sobre ela adiante.

Gente, que coisa feia. Pelo tom dos textos publicados, parece que a maioria dos autores limitou-se a fazer duas operações: copiar e colar o comunicado da instituição.

Quem não é da área talvez não saiba que as instituições e empresas escrevem um artigo (que no meio os profissionais chamam de "release") para anunciar uma descoberta, uma iniciativa, um evento, um produto, etc. O comunicado é enviado para redações e agências de notícias, que escrevem o artigo a partir dos dados fornecidos, caso se trate de um tema relevante para o público.

Os leitores podem não saber como as coisas funcionam nos bastidores, mas os jornalistas - especialmente os que se dizem comprometidos com a "verdade" e com a "imparcialidade" - sabem muito bem do que estou falando.

Por isso, fica muito chato constatar que a lista da Fundação Heritage foi comentada tal e qual está lá no site da instituição, com os indicadores de quem subiu na lista, de quem desceu, de quem ficou estagnado.

Trata-se de um pecado verificado em quase todas as latitudes em que a nossa língua é utilizada. A imprensa de Cabo Verde festejou a melhor posição entre os países de língua portuguesa; a mídia impressa lusitana festejou a melhor posição nos últimos três anos; a imprensa de Macau registrou a sua queda; o jornalismo brasileiro lamentou a perda de posição; a imprensa em Moçambique, Angola, Guiné Bissau e Timor Leste restou em silêncio; e, por fim, não pude deixar de observar um sóbrio silêncio de quem não quis jogar confete na Fundação Heritage nem quis alimentar polêmica com o coro da torcida organizada.

Fico perplexa: como é possível que em todos esses artigos que repetem os dados da fundação como se fosse um mantra mágico, os autores não tenham pensado em explicar para o leitor o que é essa tal Fundação Heritage? Não tenham investido um parágrafo para explicar a linha política adotada pela Fundação e para esclarecer qual é a posição do autor do texto ou do jornal em relação à lista da Heritage? Não é questão de fazer política no jornalismo, mas de fazer jornalismo político com transparência. Pois bem: vou prestar esse serviço de utilidade pública.

A Fundação Heritage foi fundada em 1973 e é uma "think tank" (uma instituição promotora de ideias) com a missão de formular e promover políticas públicas conservadoras, baseadas na livre iniciativa, na liberdade individual, nos valores americanos tradicionais e na forte defesa da nação. Não estou inventando nada, simplesmente traduzi sinteticamente as informações que a própria Fundação apresenta no seu site.

É claro que a lista dos "melhores" e "piores" países da lista Heritage espelha a sua concepção conservadora e liberal de mundo. Um mundo em que o mercado está no centro das relações entre as pessoas, estimulando a produção do capital humano, punindo tudo o que for improdutivo; um sistema em que as políticas governamentais devem ser reduzidas ao mínimo e as relações de trabalho devem ser flexíveis e simplificadas para favorecer o ganho. Pode-se concordar ou discordar disso tudo, mas o jornalismo perde credibilidade e vira propaganda quando não diz que está falando de uma classificação discutível, como é discutível toda e qualquer linha teórica e, principalmente, política.

Pegou mal. Especialmente porque a mesma imprensa que despudoradamente reclama da falta de liberdade de expressão, toma todas as liberdades para assumir uma linha absolutamente parcial.

Encontrei só uma exceção: Rodrigo Constantino, da Revista Veja. Bem, o seu blog é bem explícito: "Análises de um liberal sem medo de polêmicas". Pois vejam: foi o único autor que comentou a classificação da Heritage, salvando a sua reputação jornalística. Cito, porque é didático e politicamente correto, embora eu não compartilhe a sua visão de mundo:

"Naturalmente, não é um indicador perfeito - o que, aliás, não existe. Mas representa, de maneira geral, um bom termômetro do patamar de liberalismo econômico dos países".

Moral de toda essa história: escrever exige transparência e seriedade; ler exige uma certa dose de desconfiança, senso crítico e capacidade de interpretação e análise. Nem tudo que reluz é ouro. E certas notícias ruins, dependendo do ponto de vista, podem ser muito boas.


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