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O LINGUISTA E O ANTROPÓFAGO: UMA HISTÓRIA LEGAL

Como dizia meu pai, um platônico sem nunca ter lido o mestre grego, “o papel aceita tudo”. Platão, como se sabe, inventou a maiêutica (está certo, o termo não é dos mais coloquiais, mas o conceito é bastante simples: é um método pedagógico que através de perguntas e respostas sobre casos concretos conduz a uma conclusão sobre determinado tema – isso é que se pode chamar de síntese sumaríssima, perdoem-me os filósofos). Com essa tal maiêutica Platão dava mais peso ao poder do diálogo real, capaz de mudar opiniões, e menos à palavra escrita, que ele via com desconfiança por dar espaço a interpretações eventualmente afastadas das intenções do autor e não permitir a réplica ou a reformulação do conceito.
Penso sempre no caro Platão quando observo tentativas de regular o uso da língua por vias legais: um texto jurídico poderá deter a força do uso de certas palavras? Se nem a gramática é sempre respeitada, se os acordos são contestados, se os escritores são os primeiros a agir com a sabedoria platônica e a tratar a língua a partir da sua realidade para criar imagens de um mundo verossímil (ideal ou não que seja), o que poderá a lei com seu espírito e sua mão punitiva? Certamente não irá ensinar e duvido que convença. Poderá obrigar, mas, em uma sociedade felizmente democrática e dinâmica, até quando poderá fazer isso?
Entendo que os propósitos sejam bons, e que se faz o mal para obter um bem. E assim toleramos, no mais puro espírito iluminista, os projetos para proteger a língua pátria. Respeito, mas queria lembrar a lei do antropófago, de Oswald de Andrade, exemplo ainda válido de nossa mentalidade cultural: “só me interessa o que não é meu”. Hoje a antropofagia tem mais sentido cultural que em qualquer outro tempo: a globalização, no bom sentido da palavra, e a sua evolução, a glocalização, trazem para dentro da cultura o mundo inteiro, e a língua que resolva o problema de adaptar todas as novidades ao seu sistema. E como a língua somos nós, falantes, cada um faz o que quer: o linguista observa e descreve, o deputado legisla, o escritor escreve, a professora corrige, o jornalista faz um pouco de tudo na linha de frente – como um soldado de infantaria – e o tradutor, coitado, salva o que pode no campo de batalha.
Não posso negar que na minha alma prevalece o espírito de tradutora (e tradutora técnica, o que pode ser ainda mais restritivo). A minha primeira preocupação ao enfrentar um texto é que a sua tradução transmita as instruções claramente e de modo fiel ao original: porque uma tradução mal feita pode causar acidentes (no sentido real da palavra). A segunda preocupação é que os termos sejam o mais possível transparentes, quer dizer, contenham elementos que mesmo um estrangeiro possa compreender. Essa transparência pode ser obtida privilegiando os elementos de formação de palavras gregos e latinos, que são compartilhados por muitas línguas – até o inglês. A terceira preocupação é como traduzir as novidades tecnológicas. Cada palavra é um novo desafio. Admito que se tratando, em geral, de termos muito setoriais, tendo a adotar jargões que encontro cá e lá, desde que satisfaçam as condições anteriores. Às vezes não satisfazem, e a solução é transliterar (adaptar a partir da fonética da língua estrangeira ao sistema do português) ou deixar na língua original – que é sem dúvida a pior das soluções. Raramente invento, mas não é que isso não aconteça, acontece toda hora no mundo.
Esses são os ossos do ofício. Conto porque parece que traduzir para proteger a língua portuguesa é algo ao alcance de todos e se o jornalista não faz isso ou o tradutor não faz isso está “traindo” o português. Na realidade a questão é bastante complexa. Envolve, como escrevi no início, a questão da globalização, da rede mundial, da busca de uma linguagem simples e transparente. E envolve a geografia das inovações tecnológicas: quem produz novidades, produz também conceitos. Esse é o real valor do inglês hoje. Acho graça quando se fala de número de falantes como vetor de difusão de uma língua. O inglês é falado por milhões de pessoas no mundo e talvez a maioria já não seja mais falante nativo. No entanto, é dos territórios anglófonos que continuam a surgir novidades informáticas, para ficar somente numa área de impacto de massa, e é com termos em/do inglês que temos que nos confrontar para dinamizar o português.
Só me interessa o que não é meu: e assim, ao me deparar com “blackout”, canibalizo, transformo em “blecaute” e ganho uma palavra nova. São fases: basta uma boa seca e temos aí o nosso nacionalíssimo “apagão”. Sinônimo de blecaute? Tenho dúvidas.
A lição antropófaga é antiga e os linguistas sabem bem: quase todo o português é resultado da evolução e da adaptação de palavras estrangeiras: do latim ao árabe, do tupi ao iorubá, do francês ao alemão. E o mesmo se poderia dizer de muitos outros idiomas, que se contaminam mutuamente. Essa é a nossa riqueza: inútil dizer que o temor da língua inglesa é não somente infundado por motivos linguísticos, mas práticos!
Oswald de Andrade dizia: “antes de os portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade” – agora façamos as pazes entre as línguas.

Comentários

  1. Bom Dia, Gislaine.
    Não me contive ao ver o comentário sobre a "hermeneutica" atual, que é, sem sombra de dúvida, um dos grandes desafios do mundo jurídico atualmente. O intérprete das normas (sentido amplo), não deve restringir-se ao "espírito das leis" (Montesquieu) ou "mens legens" como diriam outros, mas sim, ao desenvolvimento cultural da sociedade. Os meus conhecimentos sobre a Linguística são parcos e mediocres, porém, no meu cotidiano jurídico, me deparo com as tranformações que uma palavra ou termo têm no ordenamento jurídico, criando, modificando ou extinguindo direitos e obrigações.
    As leis são fabricadas de maneira democrática "à la Sieyes" (O que é o Terceiro Estado), onde interesses privados ainda prevalecem sobre o interesse público. Diante disso, o interprete das leis deve ficar atento ao seu conteúdo social e sua eficácia politíco-institucional, dentro de um Estado Democrático de Direito, primando pela Dignidade da pessoa humana e os princípios norteadores da CF/88.

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