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DIVINDADES DA LÍNGUA

É claro que Deus escreve certo (por linhas tortas). O problema é que vivemos entre seres humanos: gramáticos, escritores e pobres mortais como eu.
Antes que alguém reclame de minha ousadia, explico: Guimarães Rosa é um deus da língua. Antônio Vieira idem. São imortais que prescidem de academias para os validar. Contudo, nem todo o universo de gente publicada pode ter o mesmo peso. Os que não entram naquele círculo exclusivo vivem tateando no meio da selva escura à procura de uma solução. Que não seja definitiva, mas pelo menos aceitável. Não é pouco.
Para gente da minha parca estirpe, quase no último escalão, perguntas do tipo “está certo ou está errado?” causam inquietação. Por que não consigo dar uma resposta simples, monossilábica, um mero “sim”, um mero “não”? Poderia ser fácil e para corroborar poderia colocar-me à sombra de um Napoleão Mendes de Almeida, de um Celso Cunha, de um Antenor Nascentes; pôr na minha boca palavras alheias por pura conveniência, para não correr o risco de perder a minha boa reputação. Perco de todo jeito: se cito Vieira, o Verissimo está aí para contradizê-lo; se me sirvo descaradamente de Graciliano, vem o Rosa para me contrariar. Não que isso me abale, já estou bem acostumada e nem me dou o trabalho de perturbar o sossego do nosso panteão.
É que não consigo. E isso apesar de a vida real já me ter mostrado mais de uma vez que uma boa citação tem poder analgésico e inibidor. É uma espécie de anti-histamínico para quem tem alergia a polêmica. Para quem se contenta com paliativos.
Para o bem e para o mal dos meus alunos, tenho o péssimo costume de escolher o caminho mais trabalhoso. Não digo que prefiro a cultura zen, mas confesso que quando a minha resposta começa com um “depende” provoco certo desconforto.
Para ir aos primórdios, poderia jogar a culpa em Aristóteles. Quem mandou ele dizer que aprendemos por imitação? Sabe-se, porém, que as coisas não estão bem assim: Aristóteles tem servido de álibi para os piores crimes. Um deles: castrar a criatividade.
Certa vez, um menino, o Alexandre, que nem era o melhor da turma (a melhor era a Aline), escreveu um texto que nunca mais se despregou de minhas retinas fatigadas. O livro didático pedia para explicar o termo “xará”. Ele escreveu o seguinte:
“Tenho um amigo que se chama Alexandre.
Ele é o meu xará.
Eu sou o xará dele.
Nós somos xarás.
Alexandre tem um amigo.
Sou eu, o seu xará.
Eu sou xará dele.
Ele é o meu xará.
Nós somos xarás.
Entendeu?”
Por coisa semelhante Carlos Drummond de Andrade foi expulso da escola por insubordinação mental. Depois disso se tornou um dos maiores poetas do século XX no Brasil. Digeri bem a lição e dei 10 para o Alexandre.
Recebi uma crítica da coordenadora pedagógica. E não era a primeira. Já tinha sido advertida por causa do Camões. Os alunos tinham saído da aula recitando trechos de “O amor é fogo que arde sem se ver”. Onde já se viu dar textos “antigos” para as crianças? É verdade: quando perguntei quando achavam que o poema tinha sido escrito elas responderam: “Há muito tempo!”. Insisti: “Quando?”. A melhor da turma disse com convicção: “Nos anos 60...”. “De qual século?”, retruquei – ah, por essa ela não esperava, e os outros também não. Descobriram com surpresa e entusiasmo que tinham lido um texto muito mais antigo do que tinham imaginado. Assim como descobriram que estavam parodiando Carlos Drummond de Andrade.
Camões é difícil porque a língua viva recria-se continuamente e afasta-se por determinados períodos de alguns usos, que passam a ser vistos como datados.Por sorte, há também o Camões que nunca saiu de moda, que entusiasma, que estimula a criatividade e faz acreditar que a língua pode ir além de nós, do nosso tempo.
Confesso: criar comporta riscos. O professor que permite criar deixa de ser uma autoridade incontestável, deixa de propor apenas o modelo mais reles de imitação. Os alunos saboreiam este gosto indescritível de manusear as palavras suas, apropriam-se delas, perdem o medo, ousam sonhar que um dia serão também clarices, cecílias, gregórios, oswalds. Descobrem a diferença entre divindade e chama divina. E isso é um perigo, um perigo enorme para alguns. Mas há sempre uma torcida silenciosa para que novos carlos sejam expulsos da escola. (revogado por excessivo moralismo)

Comentários

  1. Cara escritora deste Blog, Gislaine.
    Venho, em contentamento extremo, felicitar pelos belos parágrafos de expressão intelectual.
    Muito embora, não tenha a clareza e discernimento para explorar a Língua Portuguesa com tamanha leveza. Tenho a sensação de alívio ao acreditar que existam pessoas descontentes com o imediatismo do "sim" e "não" bruscos e sem reflexão. Me deparo muito com essa situação, eis que os problemas jurídicos requerem, inumeras vezes, respostas impossíveis de serem dadas a contento do cliente ou interlocutor. Permita-me descrever minha origem, não por apologia à algum tipo de Aristocracia, mas pela humilde lembrança de fazermos parte da mesma família.
    Conheci este endereço eletrônico por meio de minha mãe, Eliane Marins, à qual resido na mesma residência, na cidade de Imbituba, Santa Catarina.
    Abraços.

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  2. Olá Gislaine,
    acabo de conhecê-la pelo Linked In, Lusofonia. Como moro fora do Brasil há 7 anos, normalmente tenho alguma que outra dúvida de português, e vi no seu texto a palavra degeri. Poderia ser digeri?
    Um abraço,
    Cristina, de Madrid

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  3. Cristina,
    é um erro de digitação! Obrigada. Você está certa.
    Gislaine

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