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E SE A MBOITATÁ FOSSE UMA METÁFORA ATUAL?

Esta semana lembrei da Mboitatá, lenda do sul recolhida e reescrita literariamente por Simões Lopes Neto, em 1913. A distância de um século parece irônica, mas o tempo não faz ironia, apenas passa inexoravelmente, oferecendo-nos novas possibilidades de interpretação.

Nada nessa lenda abunda, tudo funciona para a construção da narrativa e para a alegoria do retorno do mundo à luz e do seu renascimento depois da morte da Mboitatá. O relato inicia nos tempos imemoráveis, que caracterizam os textos lendários:

"FOI ASSIM:
num tempo muito antigo, muito, houve uma noite tão comprida que pareceu que nunca mais haveria luz do dia."

O narrador, contudo, introduz a multiplicidade de versões da história da Mboitatá, empregando um recurso estilístico que encontraremos vinte anos mais tarde, em pleno modernismo, nos Contos de Belazarte, de Mario de Andrade. De fato, os capítulos II e III começam pela intercalação "Minto", típica da oralidade, para reformular a versão inicial e enriquecer o relato com outros detalhes. O trabalho literário transforma a forma popular em elemento artístico.

Absorvidas na estrutura do texto as diferentes versões orais, transformada a lenda em peça literária que anuncia a chegada do modernismo, a narrativa poderia acabar aqui para cumprir a sua função estética e testemunhar a herança de um período histórico que, no Rio Grande do Sul, ainda perseguia os seus elementos fundadores, apresentados de forma expressiva a partir das obras promovidas pela Sociedade Partenon Literário. A lenda, entretanto, continua a dialogar com a atualidade, graças à possibilidade de verificarmos, ao longo do tempo, a repetição de fatos que nos remetem à alegoria de mundo nas trevas.

A crise sem precedentes vivenciada no Rio Grande do Sul e no Brasil, com a destruição de instituições, de sentido de comunidade, com o avanço do desespero dos seus cidadãos, transforma a alegoria da Mboitatá em metáfora do tempo presente. O poder exercido de forma predatória, como a cobra devoradora, come os olhos dos homens e absorve a luz do mundo. Vivemos temporariamente a sensação de impotência, de cegueira num mundo de escuridão.

Simões Lopes Neto apresenta dessa forma a boiguaçu, prestes a ser denominada de Mboitatá pelos homens atônitos:

"E vai,
afinal, a boiguaçu toda já era uma luzerna, um clarão sem chamas, já era um fogaréu azulado, de luz amarela e triste e fria, saída dos olhos, que fora guardada neles, quando ainda estavam vivos…"

A luminosidade da cobra-grande é nada mais, nada menos, que a luz dos olhos dos homens e dos bichos, que ela tinha devorado. Por isso, hoje essa lenda revela-nos de forma metafórica que não podemos deixar que devorem a luz nos nossos olhos. Não podemos deixar que a cobra-grande no poder se transforme em uma luz fria e triste que absorve a luz do mundo.

A lenda oferece também um epílogo possível, que só o tempo será capaz de mostrar se poderá ser a feliz metáfora do nosso futuro:

"Passado um tempo, a boitatá morreu; de pura fraqueza morreu, porque os olhos comidos encheram-lhe o corpo mas não lhe deram sustância, pois que sustância não tem a luz que os olhos em si entranhada tiveram quando vivos…
Depois de rebolar-se rabiosa nos montes de carniça, sobre os couros pelados, sobre as carnes desfeitas, sobre as cabelamas soltas, sobre as ossamentas desparramadas, o corpo dela desmanchou-se, também como cousa da terra, que se estraga de vez.
E foi então, que a luz que estava presa se desatou por aí. E até pareceu cousa mandada: o sol apareceu de novo!"

A Mboitatá da lenda é vista às vezes pelos campos, é chamada de fogo-fátuo. Trata-se de um fenômeno de combustão espontânea do metano que se exala da terra ou dos pântanos. O seu sentido figurado é claro: indica um brilho transitório, um prazer ou uma glória de pouca duração. É o que esperamos desse terrível período que o Brasil está atravessando e que queremos que acabe como na narrativa: com o sol que volta a resplandecer, com os homens que adquirem consciência desse retorno periódico da Mboitatá, lembrando que o mal está sempre à espreita, mas não pode ser maior do que a fome. Fome, que aqui transformamos de novo em metáfora da nossa busca pela justiça e por uma independência de fato, não apenas retórica.





Comentários

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    1. Obrigada! Pode acompanhar outros artigos meus no Correio Riograndense http://www.correioriograndense.com.br/opiniao/gislaine-marins

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